Voltaire de Souza

Crônicas da vida louca

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Essa urna não tem erro

Viúva bolsonarista pode manifestar, por vezes, alguns sentimentos solidários

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Voto. Pesquisa. Eleição.

A viúva Martins não conseguia se conformar.

—Vão eleger de novo aquele ladrão?

Ela via a maré subindo à sua volta.

—A vizinhança... todo mundo era a favor do Bolsonaro.

O frio continuava para os lados da Vila do Pavio.

—Agora, não sei o que aconteceu.

O vizinho dela se chamava João Basílio.

—Desempregado... e está virando petista.

A crise atingia em cheio as atividades daquele competente jardineiro.

—Já não tenho a disposição de antes...

A viúva Martins tinha alguns resquícios de solidariedade.

—Só não admito que ele vote no Lula.

João Basílio criou coragem.

Foram tímidos os toques de campainha no sobrado da viúva.

—Sabe... não queria pedir... mas estou precisando de ajuda.

—Ouvi dizer que você é petista. Verdade?

—Bom, não sei... na época dele...

—Espera um pouco.

A viúva Martins foi até o velho armário do quarto de casal.

Um terno preto em bom estado esperava no cabide.

—Toma. Pode levar.

—Mas... é que eu sou jardineiro... terno eu não uso.

—Meu finado marido comprou na Ducal. É de boa qualidade.

—Puxa, dona.... eu nem falei com a senhora depois do falecimento dele...

—Pois é, foi Covid, mas e daí? Todo mundo morre um dia.

—Mas esse terno, sinceramente.

—Se não vai usar agora, não faz mal. Usa no seu enterro. É preto. Causa boa impressão.

João Basílio dobrou cuidadosamente a peça de indumentária.

—Em todo caso, muito obrigado, dona...

Já em casa, o jardineiro examinou as possibilidades.

—Podia vender num brechó... ou, quem sabe...

Ele resolveu experimentar o terno do finado.

Veio o sono. O cansaço. Uma leve febre.

—Será Covid? Justo agora que ninguém mais fala nisso?

Uma imagem apareceu sorridente.

—Não sou coveiro, tá OK? Ha, ha, ha...

João Basílio tentou responder ao presidente Bolsonaro.

—Pô... mas no tempo do Lula eu tinha o que comer.

—Fome? Aqui no Brasil? Chega de inventar, rapaz.

João Basílio ficou pensando.

—Tudo bem. Em outubro eu voto no Lula.

O vulto negro da viúva Martins passou rapidamente pela janela da frente.

—Serviu o terninho, meu filho?

O tecido de tergal não oferecia proteção contra o frio da madrugada.

João Basílio já estava sem vida quando a ambulância chegou.

O enterro foi simples. Mas o terno não foi esquecido.

A viúva Martins tira suas conclusões.

—Onde morre um, morrem dois.

Já é uma estatística a ser considerada.

—Com um pouco mais de esforço, a gente vira o resultado dessas pesquisas.

Na urna eletrônica, a vitória de Bolsonaro não é garantida.

Mas na urna funerária, a conversa é outra.

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