Crenças. Valores. Tradições.
Esquenta o debate eleitoral.
O dr. Afrísio fazia cara feia.
--Ninguém tem paciência para escutar essa papagaiada.
O queixo dele ia querendo encostar na ponta da gravata.
--O país está perdido.
Ele se lembrava de tempos muito antigos.
--Não tinha essa coisa de candidato ficar dando sorrisinho por aí.
A moda de ser simpático começou com Juscelino Kubitschek.
--Não. Foi com o Getúlio.
O sr. Afrísio prezava outros valores.
--Governante tinha cara séria. Compatível com o cargo.
Para o velho comerciante, isso refletia outra mentalidade.
--Honestidade. Seriedade. Ordem.
Ele rememorava sua longa vida profissional.
--Não tinha esse negócio de Pix.
Os golpes financeiros pelo celular sangram a vida financeira dos cidadãos idosos.
--Contrato era contrato, compromisso era compromisso.
A colherinha de prata tremia na borda do pires verde-claro.
--E as pessoas tinham palavra.
Era o tempo do velho fio de bigode.
--Hora de vender, vendia. Hora de pagar, pagava.
Vem a notícia.
A família Bolsonaro compra imóveis em dinheiro vivo.
--Não disse? Quer maior sinal de honestidade?
Ele aclarou a voz com mais um gole de chá.
--Não tem contrato, não tem promissória, não tem papelada.
A tarde ia ficando mais fria no velho sobrado do Sumaré.
--Nada de pix, de doc, de ted... essa invencionice toda.
Os olhos de Afrísio iam se fechando.
--Dinheiro vivo é a tradição. Desde a Bíblia.
Os dedos do ancião enumeravam respeitáveis meios de pagamento.
--Pagava-se tudo em moedas de prata. Ou camelos, conforme o caso.
Ele estava quase engasgando.
--Onde é que tem doc no Antigo Testamento?
Tratava-se, sem dúvida, de um mundo mais agrário e pastoril.
--Quando trocaram o dinheiro pelo pix, aí que começou a roubalheira.
Transações em cash podem representar, por vezes, o retorno a valores tradicionais.
Bíblicos. Seguros. Indubitáveis.
É estreito o caminho da honestidade.
Mas a boiada sempre acha um jeito de passar.
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