Matemática ajuda a explicar por que altruísmo existe e como ele evolui

Modelo considera que, quanto mais altruístas num grupo, maior a aptidão dele e a chance de sua sobrevivência

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São Paulo

Imagine uma região na qual existam tribos em constante guerra. Eis que, em uma delas, alguns indivíduos passam a se sacrificar em prol dos demais, levando o grupo a ter melhor desempenho nesse ambiente belicoso. 

Se o grupo dos altruístas conseguir vencer, colonizará o perdedor. O fato já foi observado na história, em casos em que os homens de uma tribo foram mortos e suas mulheres tiveram filhos dos vencedores, lembra Renato Vicente, professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP.

Pessoa ajuda a apagar incêndio
Pessoa ajuda a apagar incêndio - Gulashan Khan/AFP
 

Dessa forma, aquele traço de altruísmo tem chance de se perpetuar, seja ele transmitido horizontalmente, ou seja, entre os membros do grupo, ou verticalmente, para os descendentes, da mesma forma que acontece com uma nova mutação genética.

A transmissão vertical, seja genética ou comportamental, é o que se pode chamar de "pior caso", explica Vicente, porque nessa modalidade a característica tem mais dificuldade de se propagar, já que indivíduos altruístas se arriscam mais e podem morrer.

Se for possível mostrar que, mesmo no cenário mais desfavorável, há espaço para o altruísmo florescer, ficaria mais clara a forma como essa importante característica surgiu entre os animais e, especialmente, entre os homens.

Esse é um dos temas estudados por Vicente, que mostrou que é possível modelar matematicamente a evolução do altruísmo —tema do interesse de biólogos, antropólogos, cientistas sociais e, por que não, de matemáticos. 

Um modelo criado por ele considera um conjunto de regras a partir de suposições (como a de que os altruístas tendem a aumentar a aptidão do grupo, em detrimento da própria, vide as abelhas), para ver se o altruísmo existe em uma população e tem chances de permanência. 

Macacos, insetos, morcegos, lobos, camarões e até organismos unicelulares demonstram comportamento altruístico, nesses casos definido como aquele em que um indivíduo abre mão de seu sucesso reprodutivo em prol dos descendentes de seus pares. 

Uma das explicações para esse comportamento é que que muitos dos genes transmitidos adiante são compartilhados entre todo o grupo. Daí decorre o fato de que o comportamento altruísta é mais forte entre pais e filhos, por exemplo. Essa relação também pode ser escrita matematicamente e levada em conta na dinâmica do altruísmo.

Em seu livro clássico "O Gene Egoísta", o biólogo Richard Dawkins apresenta a ideia de que os organismos e grupos funcionam como um maquinário, basicamente um meio para permitir a autorreplicação de genes —que, essencialmente, podem sobreviver por gerações e gerações, ao passo que o indivíduo é muito mais efêmero.

Assim, em um aparente paradoxo, o comportamento egoísta dos genes (que só pensam em se replicar) encontra uma saída altruística para continuarem a existir (já que altruístas se doam pelo bem da existência do grupo).

Um dos exemplos, diz Vicente, são os insetos da ordem Hymnoptera, como abelhas, vespas e formigas. O grau de altruísmo observado é tão grande que culmina na perda total da capacidade de reprodução da maioria da colônia. O sacrifício tão devotado pode ser explicado pelo alto coeficiente de parentesco entre seus membros. 

Além de mostrar um caminho viável para a evolução do altruísmo, Vicente e colaboradores também mostraram como outros fatores, como a migração de indivíduos, podem influenciar esse processo, e mimetizaram o que pode acontecer em grupos reais.

A espinha dorsal da atuação acadêmica de Vicente é a área conhecida como mecânica estatística, que teve origem com os estudos do polímata belga Adolphe Quételet (1796-1874). Foi ele quem formulou pela primeira vez o conceito de normalidade, ou seja, que populações, apesar das variações individuais, convergem para uma média que tende a ser estável com o tempo ou muda muito vagarosamente.

Um exemplo é a altura: sabe-se que a de homens brasileiros, na média, é 1,71 cm, por mais que existam indivíduos muito maiores e muito menores. Na área da física, o comportamento médio de moléculas de gases também pode ser pensado nesse sentido.

Vicente lembra que a clássica equação, na qual volume e pressão se relacionam com a temperatura e quantidade de gás pode ser interpretada dessa forma. Supondo uma certa quantidade de gás dentro de uma caixa, as moléculas, cada uma de um jeito, se chocam contra as paredes. "Esses inúmeros petelecos formam a pressão, que nada mais é do que uma média de força aplicada por área."

O pesquisador almeja obter leis de funcionamento análogas —que se baseiam no comportamento do elemento micro para derivar o comportamento do macro— aplicáveis a questões como a evolução do altruísmo e também para outro problema: o surgimento da hierarquia em grupos.

Em grupos pequenos de humanos, a navegabilidade social depende de conhecer as relações entre os indivíduos. Ou seja, é bom saber quem conhece quem para pedir ajuda na hora da caça ou para medir as consequências na hora de arrumar uma briga.

Nessa conta, podem pesar dois tipos de custo para o indivíduo: um pequeno custo de conhecer essas relações entre indivíduos e guardá-las na memória, e um possível grande custo de ter esse "mapa social" mal memorizado. 

Em matemática, situações que envolvem redução de custos são conhecidas como problemas de otimização. A ideia é achar os modelos de interação entre indivíduos que reduzem, na média, esse custo.

Os resultados apontam que, a partir de um determinado número de indivíduos, vale mais a pena restringir o quanto de pessoas se conhece, já que a soma de todos os pequenos custos cognitivos se torna imensa. Se num grupo de 4 pessoas há 6 relações entre os indivíduos, num grupo de 15 esse número já sobe para 105.

"Existe muita diferença entre viver num grupo pequeno, do ponto de vista da navegação social, e em um grupo grande. Você não usa as mesmas estratégias para viver num grupo de cem ou num de três pessoas", diz Vicente.

Mas esse valor crítico, a partir do qual as relações mais horizontais e menos hierarquizadas se transformam —e alguns indivíduos viram pontos de referência— depende do ambiente. Em um local onde abundam recursos, a transição é mais lenta; em um meio mais pobre, essa hierarquização é mais rápida. 

O mais interessante é que os resultados batem com os dados do "Atlas Etnográfico" compilado pelo antropólogo George P. Murdock, em 1967, que reúne informações de 1.167 culturas, incluindo seu tamanho, nível de hierarquização e tipo do clima em que viviam, entre muitas outras características. Mais um ponto para a matemática.

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