Descrição de chapéu Obituário Maurício Tuffani (1957 - 2021)

Morre aos 63 anos Maurício Tuffani, referência no jornalismo científico do país

Ex-editor de Ciência da Folha formou gerações de repórteres

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Giovana Girardi
São Paulo

“Quando alguém morre, perde-se uma biblioteca.” Talvez eu não conheça nenhuma outra pessoa para quem essa frase se encaixe melhor do que para o Maurício Tuffani. Referência no jornalismo científico e ambiental no Brasil, foi um mestre gentil, cuidadoso e engraçado que formou gerações de repórteres dessas áreas —eu, inclusive.

Dono de uma memória prodigiosa e de uma formação ampla, Tuffani era autodidata e tinha um lado “meio enciclopédico”, como lembrou o amigo Pablo Nogueira. Seu conhecimento ia da matemática à filosofia, da legislação ambiental ao xadrez e ao aikidô, que ele praticou na juventude. Chegou a trabalhar como assessor parlamentar na Câmara no período pré-Constituição de 1988 e assessorou políticos, mas foi como jornalista que ele se tornou gigante.

O jornalista Maurício Tuffani em seminário da Folha em 2016 - Eduardo Knapp/Folhapress

Eu o conheci nesta Folha quando era uma foca de início de carreira. Era 1997, eu trabalhava no caderno Fovest e tinha alguma reportagem complicada de ciência para escrever. Minha editora não botou muita fé no meu texto e me pediu para checar com o “jornalista mais inteligente da Redação”. Era o Tuffani.

“Ele vai saber se isso está certo”, me disse ela. Até estava, mas, generoso que só, me deu uma aula de física e de como explicar aquilo de um modo melhor para os vestibulandos. Ganhamos eu e os leitores naquele dia.

Não sabia naquela época, mas Tuffani já era um monstro do jornalismo. Então editor de Ciência da Folha, ele estava no jornal em sua segunda passagem. Na primeira, no fim dos anos 1980, fez uma reportagem bombástica que o marcou para sempre e o jornalismo ambiental. Em 7 de maio de 1989, a Folha manchetou: “Governo maquiou dados sobre Amazônia”. Poderia ser hoje.

Tuffani descobriu que os primeiros números oficiais sobre o desmatamento da Amazônia, recém-lançados pelo então presidente José Sarney, eram melhores do que a realidade. Na tentativa de aplacar críticas internacionais, principalmente após a morte de Chico Mendes, Sarney divulgou que desde o descobrimento do Brasil, a Amazônia teria perdido até então “somente” 251,4 mil km2.

Suas denúncias ao longo de várias reportagens levaram a uma revisão do dado. No fim daquele ano, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) corrigiu: haviam sido devastados até então 358,7 mil km2, um número 42,6% maior. O número seria revisto ainda mais uma vez para 377,6 mil km2. Tuffani descreve aqui essa história, da qual ele sempre teve muito orgulho e era repassada como uma aula de jornalismo aos novatos.

“Ele foi pioneiro ao usar imagens de satélite para medir a devastação da Amazônia. Sem o apoio de plataformas digitais que viriam a facilitar o trabalho dos jornalistas que buscam especialistas, já cultivava fontes que lhe permitiam descobrir rapidamente os melhores cientistas e pesquisadores para cada pauta”, lembra José Roberto de Toledo, editor executivo da revista piauí e colega de Tuffani na Folha naquela época.

“Décadas antes das facilidades do Google Scholar, suas informações provinham de papers acadêmicos e teses de pós-graduação. Dominava o método científico e, quando necessário para explicar um fato ou fenômeno, lançava em um texto conceitos de física ou filosofia sem precisar copiar, muito menos colar”, complementa o amigo.

Tuffani sempre foi inquieto e trocou muitas vezes de trabalho, buscando encontrar o lugar que lhe trouxesse mais satisfação profissional e que lhe deixasse voar. Assim passou pela revista Galileu e pela Unesp, onde assessorou o então reitor da universidade, Herman Voorwald, que queria melhorar a divulgação científica da universidade, e montou depois a Unesp Ciência..

Quando Voorwald foi convidado a assumir a Secretaria de Educação do Estado, Tuffani o acompanhou como assessor. É desse período o relato do físico Paulo Nussenzveig, da USP. “Em 2016, ele chamou de corajoso um artigo que publiquei na Folha. Respondi que não achava ser coragem. O Maurício disse: ‘Um sindicalista da Apeoesp me disse que em janeiro de 2012, quando era assessor de Voorwald, eu fui corajoso ao fazer uma apresentação descendo a lenha no sindicato em um auditório na Alesp [Assembleia Legislativa de São Paulo] lotado de sindicalistas. Eu respondi que a exposição da verdade me dava a coragem para enfrentar aquela multidão, ao passo que aquela multidão dava para ele a coragem de ocultar a verdade. É por aí.’ Prometi que um dia usaria essa citação. Que perda inestimável!”, escreveu.

Seu espírito inovador e seu sangue de jornalista logo gritaram mais alto. De 2014 a 2016 manteve um blog na Folha, uma experiência que ele classificou como "uma das atividades ​mais gratificantes que exerci na imprensa". Em seu post de despedida, já anunciava a criação do site Direto da Ciência, que criou como um núcleo de notícias de ciência, ambiente e ensino superior.

Por um bom tempo, o Direto da Ciência foi um exército de um homem só. E que exército. Tuffani deu furos de reportagem, como dizemos no jargão jornalístico, com as primeiras investigações sobre o atual ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, quando ele era secretário de Ambiente de São Paulo.

No início deste ano, ele voltou para a Unesp. A revista não existe mais, mas ele se propôs a voltar a fortalecer a divulgação científica da instituição que o abraçou. Tuffani havia recebido o diagnóstico de mal de Parkinson no fim de 2019 e vinha desde então se tratando da doença. Morreu nesta segunda-feira (31), aos 63 anos, repentinamente, quando participava de uma reunião de trabalho na Unesp. Deixa a mulher, Lélia Marino, e o filho, André.

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