Descrição de chapéu
Guerra na Ucrânia Rússia

Guerra na Ucrânia destrói 70 anos de cooperação científica internacional

Boicote a cientistas russos nos projetos do Cern é um desastre que atrela a cultura científica à política

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ignácio Bediaga

Pesquisador Titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e cientista do Projeto LHCb

Mario Novello

Pesquisador Emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas

No dia 3 de março último, uma semana após o início da invasão da Ucrânia pelas tropas russas, o Brasil assinou o acordo de acesso a membro associado da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern).

A assinatura desse acordo era uma antiga reivindicação dos cientistas e técnicos brasileiros que trabalham naquele laboratório, abrangendo mais de uma centena de pessoas distribuídas em várias universidades e institutos de pesquisa em nosso país.

O Cern, para essa comunidade de cientistas, não representa somente o acesso às melhores condições de trabalho na área, mas também a Meca da física de partículas. Um lugar livre, onde a pesquisa científica é o valor maior, um lugar onde físicos teóricos e experimentais do mundo todo se encontram para discutir novas teorias, resultados experimentais, novas propostas de aceleradores, novos mecanismos de detecção de partículas.

Imagem interna do detector do experimento LHCb, o maior acelerador de partículas do mundo,
O detector do experimento LHCb, o maior acelerador de partículas do mundo, aberto para início da atualização do sistema após a segunda tomada de dados, em 2018 - Cern/Divulgação

Enfim, consiste —assim pensávamos nós— em uma ágora da ciência moderna, onde todos tínhamos espaço de participação e sempre pudemos influir nos destinos e na orientação da física de partículas e áreas científicas e tecnológicas associadas.

Essa liderança científica foi conquistada nos quase 70 anos de sua história e, desde então, se mostrou à altura do que dessa instituição poderíamos esperar: conhecimento científico, civilização e cultura.

Logo após a tragédia da Segunda Guerra Mundial, foram tomadas várias iniciativas de cooperação científica entre os países que até pouco tempo antes guerreavam entre si.

Nesse movimento, que teve como um dos seus impulsionadores o físico britânico Cecil Powell (1903-1969), prêmio Nobel de física e descobridor do méson pi junto com César Lattes (1924-2005), surgiu a primeira grande colaboração experimental, relacionada ao estudo dos raios cósmicos. Foram 36 físicos provenientes de dez diferentes instituições europeias.

A criação do Cern, em 1954, primeiro grande laboratório transnacional, em um esforço conjunto de 12 países, foi uma direta consequência do internacionalismo que norteava a comunidade científica de então. Essa cultura teve importantes resultados práticos: os países do leste europeu participaram sem nenhum tipo de discriminação durante a Guerra Fria, trabalhando lado a lado com os europeus ocidentais.

Importante dizer que os EUA também compartilhavam esse ideal internacionalista, por meio de seu grande laboratório de pesquisas nucleares e altas energias —o Fermilab. Ali também tinha nos seus experimentos importante participação de soviéticos.

Essas colaborações resistiram às várias invasões de outros países por parte tanto da URSS quanto dos EUA, dentro da lógica da Guerra Fria. Importante também ressaltar que os cientistas sofreram —e resistiram a— grandes pressões para que se limitasse à época esse tipo de colaboração entre os dois blocos então dominantes.

O físico César Lattes desembarca no Brasil em 1948, aos 24 anos, depois de participar da descoberta de uma nova partícula subatômica, a méson pi, em Bristol, na Inglaterra
O físico César Lattes desembarca no Brasil em 1948, aos 24 anos, depois de participar da descoberta de uma nova partícula subatômica, a méson pi, em Bristol, na Inglaterra - Acervo pessoal

Essa experiência, tanto científica quanto sociológica, foi um grande sucesso, comemorado por Powell em um discurso onde proferiu a famosa sentença: "No decorrer deste trabalho, meus colegas e eu ficamos profundamente impressionados com as poderosas forças construtivas, que são liberadas quando os representantes de muitas tradições nacionais trabalham juntos em harmonia, para um propósito comum".

O internacionalismo científico como ideal implicava na cooperação entre diferentes culturas, e constituiu as bases do surgimento de grandes colaborações científicas internacionais, ideal que perdurava até pouco dias atrás.

Infelizmente, nos dias atuais, nesta época de enorme colaboração econômica entre países, a invasão da Ucrânia pela Rússia, gerou uma histeria coletiva, que acabou por colocar em questão essa frutífera cultura de colaboração internacional entre cientistas.

A decisão do conselho geral do Cern de não permitir novas colaborações científicas com participação de pesquisadores russos, apesar de parecer inócua do ponto de vista prático, tem um potencial de desencadear um processo destrutivo com consequências incontroláveis.

O Instituto Kurchatov, com vários laboratórios dentro da Rússia e responsável pela coordenação dos cientistas desse país em projetos de colaboração científica em grande escala, incluindo os trabalhos no Cern, publicou um manifesto apoiando a invasão e conclamando a união da comunidade científica em torno do presidente russo.

Por outro lado, a Alemanha e a Polônia, estados membros do Cern, decidiram zerar qualquer colaboração científica com a Rússia. Provavelmente essa decisão em breve será apresentada ao conselho do Cern, com uma probabilidade alta de ser aprovada, já que nesse conselho, além de cientistas, encontram-se também políticos responsáveis pelo financiamento da instituição.

Sinais dessa nefasta e possível direção já apareceram, mesmo dentro do corpo científico. Foi decidida pelos quatro coordenadores das experiências que usam o acelerador LHC, das quais participam vários cientistas brasileiros, uma proposta segundo a qual nenhum artigo dessas colaborações deveria ser enviado para publicação em revistas científicas internacionais, enquanto não se definir a situação da guerra.

É importante lembrar que as opiniões políticas dos cientistas nunca interferiram nessas cooperações. Deixar que a política determine a orientação das atividades científicas é um desastre para a cooperação e o desenvolvimento da ciência. E, mais grave ainda, atrela a cultura científica à política.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.