Mulheres são apagadas na ciência com obras e ideias roubadas

Termos como 'bropriating' e 'mansplaining' designam a apropriação de ideias e a explicação de forma inferiorizada às mulheres

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São Paulo

Em uma noite em Aspen (EUA), a escritora Rebecca Solnit e uma amiga estavam sentadas à mesa de um anfitrião quando foram interpeladas sobre um livro que "elas tinham que ler". Enquanto ele contava de forma presunçosa sobre a obra, mal sabia o homem que Solnit era a própria autora.

A cena, descrita no livro "Os Homens Explicam Tudo para Mim" (ed. Cultrix), assinado por Solnit, é o chamado "mansplaining", quando homens explicam o óbvio para mulheres, como se elas não fossem capazes de entender os conceitos sozinhas.

A física Mileva Maric, entre os filhos Lieserl (esq.) e Hans, foi a primeira mulher do físico alemão Albert Einstein
A física Mileva Maric, entre os filhos Lieserl (esq.) e Hans, foi a primeira mulher do físico alemão Albert Einstein; diferentemente do marido, ela foi pouco reconhecida por ter sido física e realizado trabalhos relevantes - Reprodução

Ao lado de "bropriating", quando um homem rouba ideias ou argumentos de outras mulheres, os termos exemplificam como elas podem ser apagadas historicamente na ciência e ter suas obras roubadas.

Na última semana, a psicóloga Valeska Zanello foi vítima de um caso que se encaixa neste processo. Isso porque ela afirmou que teve sua obra plagiada pelo estudante de psicologia João Luiz Marques.

Os conteúdos usados por Marques discutiam temas referentes à masculinidade e a relacionamentos tóxicos. No dia seguinte, ele fez um post em que pedia desculpas e admitiu ter usado as obras dela sem lhe dar os devidos créditos.

"A invisibilização das mulheres acontece de forma intelectual, no tratamento e nos direitos, e eu cometi o mesmo erro, reconheço, peço desculpas e faço desse texto uma promessa de que, da minha parte, isso não acontecerá mais", diz o texto de Marques.

A Folha entrou em contato com o universitário, mas não recebeu resposta.

Zanello comenta que a situação é um bom exemplo de como o machismo estrutural age. Após o ocorrido, ela diz ter recebido mensagens de mulheres contando que haviam sofrido o mesmo que ela. Já entre os homens, muitos a marcaram em posts, mas com conteúdos que eles haviam plagiado de pensadoras que manifestaram apoio.

"Eles estavam criticando o rapaz que fez o plágio, só que plagiando outras mulheres. Isso mostra quanto a gente precisa discutir esse machismo estrutural, porque ele é tão entranhado que é invisível para os homens", diz ela. "O fato de ser invisível para eles não tira os danos sobre a saúde mental e a vida profissional das mulheres."

O presidente da comissão nacional de direito autoral da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Sidney Sanches, diz que há dois tipos de violação de direitos autorais.

O primeiro, chamado cópia ou reprodução servil, é a reprodução literal de um texto ou outro conteúdo intelectual ou artístico sem dar o devido crédito ao autor. O segundo é quando a pessoa altera a formatação do texto ou obra em uma tentativa de ocultar o conteúdo original e é conhecido como plágio.

Para a antropóloga e professora da UnB (Universidade de Brasília) Débora Diniz, o ocorrido com Valeska Zanello não é atípico entre as violações de integridade acadêmica.

"O plágio é uma forma de criação de barreiras às mulheres", diz. Porém, Diniz afirma que o plágio é algo "tonto", pois, hoje, há programas que conseguem detectar quando um texto foi plagiado.

Para Diniz, as principais formas de silenciar as mulheres na ciência estão, principalmente, na aparição e no reconhecimento. Ela menciona um caso muito comum que acontece na ordem de autoria de um artigo científico.

"O primeiro autor é aquele que lidera, o que mais escreveu, pensou e idealizou a pesquisa", diz ela. "Na prática, o que aconteceu é que o primeiro autor passa a ser o dono do laboratório ou o pesquisador sênior, mas não necessariamente quem mais trabalhou."

A antropóloga afirma que, na ciência, a ordem de autoria importa, por exemplo, para se inscrever para novos financiamentos. "A depender da área, isso pode estar relacionado a quantos artigos a mulher foi a primeira autora. E isso é silenciado, naturalizado e a mulher acaba desaparecendo."

Para a psicóloga Lavínia Palma, situações como a que Valeska vivenciou acontecem e devem continuar acontecendo porque, apesar de as mulheres terem conquistado o espaço no trabalho e na academia, a estrutura social ainda não mudou. "O espaço da mulher ainda é o doméstico. Ela sai para trabalhar, mas não deixa o papel maternal. O espaço público ainda é dos homens", lamenta.

A referência reduzida na história e na ciência de figuras femininas é provavelmente subnotificada, como mostra um trabalho realizado pelas pesquisadoras Paula Pelissoli, Maiara Dalpiaz e Clarice Portela, graduadas em letras no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS).

"Muitas vezes, o apagamento é tamanho que se torna visível. Isso faz com que qualquer pesquisador mais atento questione se a ausência é por falta de mulheres em determinada área, ou por descaso e desprezo do grupo dominante. Geralmente, a segunda opção é mais comum", explica Portela.

Sanches, da OAB, também defende ser necessário um trabalho de reparação histórica para fazer justiça às mulheres autoras, pesquisadoras, artistas e escritoras que não receberam o devido reconhecimento por suas obras.

Um exemplo é o da química e primeira pessoa a descobrir a dupla fita do DNA (molécula que compõe o material genético dos seres vivos), Rosalind Franklin.

Ela era pesquisadora na King's College em Londres (ING) quando conseguiu capturar, usando raio-X, a famosa foto do material em dupla-hélice.

Dois colegas de instituição, James Watson e Francis Crick, publicaram a foto sem permissão de Franklin e sem dar os créditos, e são lembrados até hoje como os cientistas que "descobriram" a estrutura do DNA.

A britânica Rosalind Franklin, especialista em difração de raios-X
A britânica Rosalind Franklin, especialista em difração de raios-X - Reprodução/The Dark Lady of DNA

Em outras situações, o silenciamento não é tanto pela apropriação de descobertas, mas pelo fato de as mulheres ficarem à sombra de homens famosos. Um dos casos investigados pelas pesquisadoras doIFRS foi Mileva Maric, a primeira mulher do mais famoso físico do século 20, o alemão Albert Einstein.

"O fato de a esposa de Einstein também ser física, ou que havia realizado trabalhos tão relevantes, não é do conhecimento público", afirmam Portela e colegas.

Esse apagamento das mulheres provoca uma falta do olhar feminino na construção cultural e científica da nossa sociedade, segundo ela. "Muitas vezes o que é considerado natural é fruto de uma construção secular com base em uma visão majoritariamente masculina", afirma Portela.

Erramos: o texto foi alterado

À época da sua pesquisa no King's College, em Londres, a química Rosalind Franklin não era estudante de pós-graduação, como foi incorretamente afirmado pela reportagem. O texto foi corrigido.

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