Descrição de chapéu Coronavírus

Teoria de que Covid surgiu em laboratório é nefasta, diz autor de 'Contágio' em novo livro

David Quammen considera, por outro lado, plausível que indícios sobre a gênese do vírus Sars-CoV-2 tenham sido ocultados deliberadamente

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São Carlos (SP)

Depois de entrevistar quase uma centena de cientistas do mundo todo e reconstruir passo a passo o processo de descoberta do vírus causador da Covid-19, o escritor americano David Quammen diz que hipóteses sobre uma suposta origem da doença no laboratório muito provavelmente são balela.

"Às vezes é complicado ajudar o público a entender isso. Mas os cientistas têm dificuldade de prever as características que transformariam um coronavírus numa ameaça global", explica ele.

Mercado em Wuhan, na China; cidade é apontada como local onde a pandemia de Covid começou - Hector Retamal - 18.mai2020/AFP

"O vírus mais semelhante ao causador da Covid-19 identificado antes da pandemia tinha 96% de similaridade genética com ele. Isso significa que as diferenças entre um e outro correspondem a 1.100 locais diferentes do material genético viral. Como um cientista saberia que era necessário fazer todas essas alterações ao mesmo tempo? A resposta é que ele jamais saberia —mas essas mudanças acontecem o tempo todo por meio da seleção natural", afirma.

Autor de alguns dos mais importantes livros de divulgação científica das últimas décadas, Quammen acaba de lançar "Sem Fôlego", relato do duelo entre a ciência e a pandemia nos últimos anos. O trabalho de Quammen chegou a ser descrito como profético quando o "novo coronavírus", como era chamado então, começou a se espalhar pelo planeta nos primeiros meses de 2020. Em "Contágio", livro publicado por ele quase uma década antes, o autor detalha como os patógenos (causadores de doenças) pandêmicos surgem a partir de animais selvagens e aponta os coronavírus como grandes candidatos a causar um desastre global, como de fato aconteceu.

Em geral, Quammen constrói suas narrativas com base em muita pesquisa de campo, visitando laboratórios, cavernas infestadas por morcegos e florestas, entre outros lugares nos quais as descobertas estão acontecendo em tempo real. Com "Sem Fôlego", porém, as restrições a viagens internacionais dos tempos pandêmicos fizeram com que ele precisasse atuar de outra maneira.

"Trabalhei durante um ano no livro praticamente sem sair do meu escritório aqui em Montana, do lado do tanque do Boots", brinca ele, referindo-se a uma píton-real que ele e a mulher adotaram anos atrás (o casal também é tutor de alguns cães).

"Claro que eu sabia que muitos livros acabariam sendo escritos para a pandemia. Para tentar fazer algo diferente e contornar essas limitações de viagens, decidi escrever um livro no qual o vírus é o principal personagem. Um livro que fosse sobre a ciência do vírus e sobre os cientistas que a desvendaram", explicou Quammen em videoconferência com a Folha.

O formato virtual também teve algumas vantagens. "Consegui entrevistar muito mais gente do que seria possível presencialmente, e conversas longas pela internet acabam trazendo uma certa intimidade com quem está do outro lado, curiosamente. Também gostei de não ficar me descrevendo no centro da ação, como acontece quando falo do trabalho de campo numa floresta, por exemplo."

Ele também destaca que, no fim das contas, tanto pesquisadores já muito conhecidos do público como jovens estudantes de pós-graduação foram essenciais para os esforços de compreensão do patógeno.

Principiando com as tentativas iniciais de decodificar o material genético do vírus que ficaria conhecido como Sars-CoV-2, a narrativa se encerra no final de 2021, com a chegada da variante ômicron ao cenário mundial. "É uma história que, claro, vai continuar por muito tempo. Basta ver o que está acontecendo na China agora —a política de 'Covid zero' deles acabou se revelando inviável e extremamente custosa", exemplifica.

Embora rejeite as hipóteses sobre a origem do vírus que ele chama de "nefastas" —a ideia de que ele teria sido engendrado em laboratório, intencionalmente ou por acidente—, Quammen considera plausível a ideia de que pode ter havido uma ocultação deliberada de indícios sobre a gênese dele.

Um dos estudos citados pelo autor postula que funcionários do governo chinês poderiam ter encoberto o descuido com o comércio de animais selvagens no mercado de Wuhan, onde a pandemia começou. Mamíferos silvestres asiáticos estão entre os reservatórios potenciais de patógenos perigosos, e o governo da China havia se comprometido a controlar esse comércio.

"Esse fracasso em colocar a lei em prática seria uma motivação para esterilizar o mercado e destruir as evidências", diz. "É um mercado muito difícil de suprimir, porque é comercialmente e socialmente importante em diversos locais do mundo, inclusive na China. A verdade é que, quando falamos de vírus de origem animal, é como se tivéssemos balas que passam raspando pela nossa cabeça o tempo todo. A questão é que essa nos atingiu direto no peito."

Considerando o que se sabe sobre as pandemias do passado, Quammen afirma não ter se surpreendido com a quantidade de desinformação que ainda circula sobre a Covid-19 e com o fato de que muitos líderes políticos não parecem ter aprendido nada com a pandemia. "Cabe a nós fazer todo o possível para que o público consiga entender como a ciência funciona", diz o autor.

'Sem Fôlego: A Corrida Científica Para Derrotar Um Vírus Mortal'

  • Preço R$ 44,90 (ebook); 608 págs.
  • Autor David Quammen
  • Editora Companhia das Letras
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