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Como os jumentos mudaram o curso da história humana

Em algumas partes do mundo, incluindo o Brasil, o jumento foi injustamente associado a expressões de insulto ou deboche

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Dhananjay Khadilkar
BBC News Brasil

Eles são mais conhecidos pela sua notável capacidade de carregar cargas pesadas e pelo seu comportamento tenaz —quase estoico— com relação ao trabalho.

Em algumas partes do mundo (incluindo o Brasil), o jumento foi injustamente associado a expressões de insulto ou deboche.

Os jumentos tiveram importância surpreendente no comércio, na religião e nas guerras ao longo da história humana - Getty Images

No entanto, em uma aldeia francesa a cerca de 280 km a leste de Paris, arqueólogos fizeram uma descoberta que está ajudando a reescrever grande parte do que sabemos sobre esses animais de carga desprezados.

No local de uma vila romana na aldeia francesa de Boinville-en-Woëvre, uma equipe desenterrou os restos de diversos jumentos que teriam feito a maioria das espécies que conhecemos hoje em dia parecerem anões.

"Eram jumentosgigantes", afirma Ludovic Orlando, diretor do Centro de Antropobiologia e Genômica de Toulouse, da Faculdade de Medicina Purpan, na França. "Esses espécimes, geneticamente ligados aos jumentos da África, eram maiores do que alguns cavalos."

Orlando lidera um projeto que sequenciou o DNA dos esqueletos dos jumentos. Era parte de um estudo muito maior para rastrear a origem da domesticação dos jumentose sua subsequente expansão para outras partes do mundo. Sua pesquisa fornece informações surpreendentes sobre a história da nossa própria espécie, por meio de sua relação com esses versáteis animais.

Segundo Orlando, os jumentosque foram criados na vila romana em Boinville-en-Woëvre mediam 1,55 metro (ou 15 mãos, seguindo a unidade de medida da altura dos cavalos) do solo até a cernelha - uma parte saliente entre as escápulas dos animais.

A altura média dos jumentos atuais é de 1,30 metro (12 mãos). Os únicos jumentos modernos que podem chegar perto dessa altura são os jumentos-mamutes-americanos, que são jumentos machos excepcionalmente grandes, muitas vezes usados para reprodução.

Jumentos gigantes como os encontrados em Boinville-en-Woëvre podem ter desempenhado um papel importante, mas menosprezado, na expansão do Império Romano e nas suas tentativas posteriores de manutenção do território, segundo Orlando.

Os jumentos foram domesticados pela primeira vez a partir de asnos selvagens, cerca de 7 mil anos atrás, no leste da África; eles podem ter ajudado os seres humanos a adaptar-se ao aumento da aridez no continente africano - Erick Lafforgue/Getty

"Entre os séculos 2° e 5°, os romanos os criavam para a produção de mulas [pelo cruzamento dos jumentos com cavalos], que desempenhavam um papel importante no transporte de mercadorias e equipamento militar", explica ele. "Embora estivessem na Europa, eles eram criados e misturados com jumentos provenientes do oeste africano."

Mas as mudanças do destino do Império Romano provavelmente fizeram com que essa espécie de jumento gigante também desaparecesse.

"Se você não tiver um império com milhares de quilômetros de extensão, você não precisa de um animal que carregue mercadorias por distâncias enormes", afirma Orlando. "Não havia incentivo econômico para continuar produzindo mulas."

ADAPTAÇÃO A MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Para descobrir como os jumentos cumpriram seu papel na história humana, uma equipe internacional de 49 cientistas de 37 laboratórios sequenciou os genomas de 31 jumentos antigos e 207 modernos de todo o mundo. Usando técnicas de modelagem genética, eles conseguiram rastrear as mudanças da população de jumentos o longo do tempo.

Eles descobriram que os jumentos, muito provavelmente, foram domesticados em primeiro lugar a partir dos asnos selvagens - provavelmente, por pastores - cerca de 7 mil anos atrás no Quênia e no Chifre da África. É um pouco mais cedo do que se acreditava anteriormente, mas, o mais surpreendente talvez seja que os pesquisadores também concluíram que todos os jumentosmodernos que vivem hoje em dia aparentemente descendem daquele mesmo evento de domesticação.

Estudos anteriores indicaram que pode ter havido outras tentativas de domesticação de jumentos no Iêmen.

Os jumentos são usados até hoje para tarefas surpreendentes, como limpar as ruas estreitas da cidade de Mardin, na Turquia - Anadolu Agency

E é interessante observar que a primeira domesticação de jumentos no leste africano coincidiu com a desertificação do Saara, que, um dia, foi uma área verde.

O enfraquecimento repentino das monções, cerca de 8,2 mil anos atrás, combinado com o aumento da atividade humana com pastagem e queimadas, gerou queda das chuvas e o aumento gradual do deserto e da região do Sahel. Os jumentosdomesticados podem ter sido fundamentais para que os humanos se adaptassem a esse ambiente cada vez mais hostil.

"Acreditamos que, devido às mudanças climáticas, as populações [humanas] locais tenham precisado se adaptar", afirma Orlando. "Em jumentos, eles poderiam promover um serviço essencial de transporte de grandes quantidades de carga por longas distâncias e em cenários difíceis."

Eles observaram que, aparentemente, a população de jumentos também diminuiu dramaticamente depois da sua domesticação inicial, para depois sofrer outro forte crescimento.

"Isso é típico da domesticação e observado em algum momento, em quase todas as espécies domesticadas", afirma Evelyn Todd, geneticista da população do Centro de Antropobiologia e Genômica de Toulouse, que também participou do estudo.

A redução é o resultado da seleção de um conjunto específico de jumentos para domesticação, enquanto sua posterior reprodução contribui para seu forte aumento.

As análises indicam que os jumentos aparentemente se espalharam a partir do leste da África, tendo sido comercializados para o Sudão e, dali, para o Egito, onde foram encontrados restos de jumentos em sítios arqueológicos datados de até 6,5 mil anos atrás. E, nos 2,5 mil anos seguintes, essa nova espécie domesticada espalhou-se por toda a Europa e a Ásia, desenvolvendo as linhagens que encontramos hoje em dia.

'JUMENTOS DE CARGA'

Segundo a arqueóloga Laerke Recht, da Universidade de Graz, na Áustria, os jumentosfizeram uma enorme diferença na capacidade humana de transportar mercadorias por longas distâncias por terra, devido à resistência desses animais e sua capacidade de carregar grandes volumes.

"Embora rios como o Tigre e o Eufrates, na Mesopotâmia, e o Nilo, no Egito, pudessem ser usados para o transporte de mercadorias pesadas e/ou volumosas, os jumentossignificavam um enorme aumento e intensificação dos contatos por terra", explica ela.

Os jumentos podem carregar volumes surpreendentes nas costas - até 20-30% do seu próprio peso - com segurança - Getty Images

Recht afirma que isso coincidiu com o aumento do uso do bronze durante o terceiro milênio antes de Cristo.

"Os jumentos conseguiam carregar o peso do cobre por longas distâncias e para regiões onde [o metal] não podia ser encontrado naturalmente (ou apenas em quantidades muito pequenas), incluindo a Mesopotâmia", afirma ela.

Mas os jumentos e outros equídeos também mudaram os equipamentos bélicos no mesmo período.

"Começamos a vê-los à frente de veículos com rodas participando de batalhas, além de fornecer o transporte das provisões necessárias para um exército invasor", afirma Recht.

Os jumentos tinham tanta importância que eram até apresentados em rituais importantes.

"No Egito e na Mesopotâmia, os jumentoseram considerados tão importantes que eram enterrados com seres humanos - em alguns casos, até com reis ou governantes", afirma Recht.

"Existem também casos de jumentosenterrados sozinhos."

Ela acrescenta que, no segundo milênio antes de Cristo, os jumentos também eram sacrificados para os chamados depósitos de construção ou fundações e como parte de rituais associados à assinatura de tratados.

Os exemplares mais antigos estudados por Orlando e seus colegas foram três jumentos da idade do bronze, encontrados na Turquia.

"Eles são datados por radiocarbono com 4,5 mil anos de idade e têm composição genética similar às subpopulações asiáticas modernas", afirma Todd. Isso indica que a subpopulação de jumentos domesticados da Ásia desmembrou-se de outras linhagens mais ou menos nessa época.

As pesquisas também confirmam que os jumentostêm sido companhia muito mais constante dos seres humanos que seus parentes equinos, os cavalos.

"Os cavalos domésticos modernos, que foram domesticados cerca de 4,2 mil anos atrás, tiveram impacto muito grande sobre a história humana", afirma Orlando. "Agora, o nosso estudo revela que o impacto dos jumentos é ainda anterior."

A infindável utilidade dos jumentos contraria um pouco a quantidade de atenção que ele recebeu, em comparação com os cães e os cavalos. Atualmente, os jumentos são bastante desprezados em muitas partes do mundo. Mas, em alguns lugares, eles ainda mantêm a mesma importância de sempre.

Segundo Todd, o jumento é um animal importante na vida diária de milhões de pessoas em todo o mundo - Getty Images

"O jumento é um animal importante na vida diária de milhões de pessoas em todo o mundo", afirma Todd. "Sua população aumenta em 1% todos os anos."

"Nos países em desenvolvimento, os jumentos não são usados na vida diária, mas, em muitas comunidades em desenvolvimento em regiões que incluem a África e a península arábica, ainda se conta com os jumentos para a movimentação de pessoas e mercadorias", explica ela.

Todd acrescenta que compreender a composição genética dos jumentos pode também ajudar a melhorar sua criação e administração no futuro.

Uma questão importante que os pesquisadores esperam responder em estudos futuros é encontrar um parente selvagem próximo do jumento domesticado. Orlando, Todd e seus colegas conseguiram identificar três candidatos.

"Sabemos que o jumento descende do asno silvestre africano", afirma Todd. "Existem três subespécies conhecidas. Uma delas foi extinta no tempo dos romanos, em 200 d.C., a segunda provavelmente está extinta na vida selvagem e a terceira está em perigo crítico de extinção."

É preciso mais estudo para saber se existiram ou se ainda existem outras subespécies não identificadas do asno silvestre africano, o que poderá ajudar a aumentar nossa compreensão da história genética dos jumentos. Talvez elas revelem mais sobre a importância do papel desempenhado pelos jumentos na nossa própria história.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) aqui.

Erramos: o texto foi alterado

O texto se refere a jumentos, e não a burros, como publicado incorretamente em versão anterior deste texto. 
 

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