Descrição de chapéu The New York Times

Criaturas marinhas bizarras jogam luz sobre o surgimento do reino animal

Cientistas se dividem sobre a espécie que seria a base da árvore genealógica animal

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Carl Zimmer
The New York Times

Uma das maiores transformações da história da vida ocorreu há mais de 600 milhões de anos, quando um organismo unicelular deu origem aos primeiros animais. Com seus corpos multicelulares, os animais evoluíram para uma incrível variedade de formas, como baleias que pesam 200 toneladas, pássaros que voam 10 quilômetros pelo céu e serpentes que deslizam pelas dunas do deserto.

Os cientistas há muito se perguntam como eram os primeiros animais, incluindo questões sobre sua anatomia e como encontravam comida. Em um estudo publicado na última quarta-feira (17), os cientistas encontraram respostas tentadoras em um grupo pouco conhecido de criaturas gelatinosas chamadas ctenóforos bioluminescentes, popularmente águas-vivas-de-pente, ou carambolas-do-mar.

Embora os primeiros animais permaneçam um mistério, os cientistas descobriram que as águas-vivas-de-pente pertencem ao ramo mais profundo da árvore genealógica animal.

Água-viva-de-pente capturada na Baía de Monterey, Califórnia (EUA)
Os cientistas descobriram que o ctenóforo lobado B. microptera, ou água-viva-de-pente, possui um sistema nervoso: uma teia de neurônios ao redor de seus corpos que controla seus músculos - Shannon Johnson 2019 MBARI/Nature

A discussão sobre a origem dos animais já dura décadas. No início, os pesquisadores confiaram muito no registro fóssil para obter pistas. Os fósseis de animais definitivos mais antigos datam de cerca de 580 milhões de anos, embora alguns pesquisadores tenham afirmado que encontraram outros ainda mais antigos. Em 2021, por exemplo, a paleontóloga canadense Elizabeth Turner relatou ter encontrado fósseis de 890 milhões de anos, possivelmente de esponjas.

As esponjas fariam sentido como o animal mais antigo. São criaturas simples, sem músculos ou sistema nervoso. Elas se ancoram no leito do oceano, onde filtram a água através de um labirinto de poros, aprisionando plâncton e pequenos alimentos.

As esponjas são tão simples, na verdade, que pode causar surpresa saber que são animais, mas sua composição molecular revela seu parentesco. Elas produzem certas proteínas, como o colágeno, que só são produzidas por animais. Além disso, seu DNA mostra que elas estão mais relacionadas aos animais do que a outras formas de vida.

A partir da década de 1990, com os cientistas coletando DNA de mais espécies, eles tentaram desenhar a árvore genealógica dos animais. Em alguns estudos, as esponjas foram parar no ramo mais baixo da árvore. Nesse cenário, os animais desenvolveram um sistema nervoso somente depois que as esponjas se ramificaram.

A esponja hexactinellidae coletada e que teve seu DNA sequenciado para o estudo publicado na revista Nature
A esponja hexactinellidae coletada e que teve seu DNA sequenciado para o estudo publicado na revista Nature. As esponjas são criaturas simples, sem músculos ou sistema nervoso - 2021 MBARI/Nature

Mas no início dos anos 2000 outros cientistas chegaram a uma conclusão surpreendentemente diferente. Descobriram que o ramo mais profundo dos animais eram as águas-vivas-de-pente —criaturas esguias e ovais que muitas vezes desenvolvem um conjunto de listras iridescentes que piscam na escuridão profunda do oceano.

Muitos especialistas relutaram em aceitar essa conclusão, porque significava que a evolução animal era mais estranha do que eles imaginavam. Por um lado, as águas-vivas-de-pente não eram tão simples quanto as esponjas. Elas têm um sistema nervoso: uma teia de neurônios ao redor de seus corpos que controla seus músculos.

Para resolver o debate águas-vivas-de-pente versus esponja, pesquisadores de todo o mundo coletaram DNA de mais espécies de animais oceânicos. E em vez de examinar genes individuais eles descobriram como sequenciar genomas inteiros.

Mas a avalanche de novos dados não conseguiu resolver o debate. Alguns cientistas acabaram montando uma árvore em que as esponjas eram o ramo mais profundo, enquanto outros ficaram com as águas-vivas-de-pente.

O novo estudo, publicado na revista Nature, baseou-se num novo método que usa o DNA para rastrear a evolução animal.

Em estudos anteriores, os cientistas analisaram como certas mutações surgiam em diferentes ramos animais. Uma mutação pode fazer com que uma única letra genética, conhecida como base, mude para uma letra diferente. Essa mutação será então herdada pelos descendentes de um animal.

A esponja cladorhizid foi coletada na costa da Califórnia (EUA), a uma profundidade de 3.975 m. O seu DNA mostra que essas esponjas estão mais relacionadas aos animais do que a outras formas de vida
A esponja cladorhizid foi coletada na costa da Califórnia (EUA), a uma profundidade de 3.975 m. O seu DNA mostra que essas esponjas estão mais relacionadas aos animais do que a outras formas de vida - Shannon Johnson 2021 MBARI/Nature

Mas essas mutações podem não ser confiáveis como marcadores da história. Uma base pode mudar de uma letra para outra e, milhões de anos depois, voltar à original. Alternativamente, a mesma base pode mudar para a mesma letra em duas linhagens não relacionadas. Essa evolução paralela cria a ilusão de que as duas linhagens estão intimamente relacionadas.

No novo estudo, Darrin Schultz, biólogo evolutivo da Universidade de Viena (Áustria), e seus colegas analisaram um tipo diferente de mudança genética. Em raras ocasiões, um grande pedaço de DNA será movido acidentalmente de um cromossomo para outro.

Essa mutação massiva tem menor probabilidade de enganar os cientistas. As chances de exatamente o mesmo pedaço de DNA se mover exatamente para o mesmo local uma segunda vez são astronomicamente pequenas. Também é quase impossível esse pedaço voltar exatamente para o local de onde veio.

"É uma evidência direta de que algo aconteceu", disse Schultz.

Sua equipe rastreou os movimentos de material genético nos cromossomos de nove animais, juntamente com três parentes unicelulares de animais. Eles encontraram vários pedaços de DNA exatamente no mesmo local nos genomas de esponjas e de outros animais. Mas esses pedaços estavam numa posição diferente nas águas-vivas-de-pente e em parentes unicelulares de animais. Essa descoberta levou Schultz e seus colegas a concluírem que as águas-vivas-de-pente se separaram primeiro de outros animais.

O estudo levanta novas possibilidades intrigantes sobre a aparência do ancestral comum dos animais vivos. Se as águas-vivas-de-pente, com um sistema nervoso e músculos, são o ramo mais profundo da árvore animal, então os primeiros animais podem não ter sido simples e esponjosos. Eles também tinham sistemas nervosos e músculos. Só mais tarde as esponjas abandonaram seu sistema nervoso.

A esponja cladorhizídeo é bioluminescente quando perturbada mecanicamente.
A esponja cladorhizídeo é bioluminescente quando perturbada mecanicamente. As esponjas do mar produzem certas proteínas, como o colágeno, que só são produzidas por animais - 2021 MBARI/Nature

Schultz alertou contra pensar nas águas-vivas-de-pente como fósseis vivos, inalterados desde o surgimento dos animais. "Algo que está vivo hoje não pode ser o ancestral de algo vivo hoje", disse ele.

Em vez disso, os pesquisadores agora examinam as águas-vivas-de-pente para ver como seus sistemas nervosos são semelhantes e diferentes dos de outros animais. Recentemente, Maike Kittelmann, bióloga celular da Universidade Oxford Brookes, e seus colegas congelaram larvas de águas-vivas-de-pente para que pudessem dar uma olhada microscópica em seu sistema nervoso. O que viram os deixou perplexos.

Em todo o reino animal, os neurônios são normalmente separados uns dos outros por pequenas lacunas chamadas sinapses. Eles podem se comunicar através da lacuna liberando produtos químicos.

Quando Kittelmann e seus colegas começaram a inspecionar os neurônios das águas-vivas-de-pente, porém, tiveram dificuldade para encontrar uma sinapse entre os neurônios. "Naquele ponto, pensamos: 'Isso é curioso'", disse ela.

No final, eles não conseguiram encontrar nenhuma sinapse. Em vez disso, o sistema nervoso da águas-vivas-de-pente forma uma teia contínua.

Quando Kittelmann e seus colegas relataram suas descobertas, no mês passado, eles especularam ainda outra possibilidade para a origem dos animais. As águas-vivas-de-pente podem ter desenvolvido seu próprio sistema nervoso estranho independentemente de outros animais, usando alguns dos mesmos blocos de construção.

Kittelmann e seus colegas estão agora inspecionando outras espécies de águas-vivas-de-pente para ver se essa ideia se sustenta. Mas não ficarão surpresos se forem surpreendidos novamente. "Não se deve presumir nada", afirmou ela.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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