Descrição de chapéu BBC News Brasil

Por que experimentos científicos usaram mais camundongos machos do que fêmeas?

Experimentos com cobaias e ensaios clínicos com humanos por muito tempo focaram apenas nos machos, o que traz consequências reais à saúde das mulheres

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sarah Bailey
BBC News Brasil

Se você já tomou um medicamento, você já se beneficiou da pesquisa com animais. Mas, dez anos atrás, se você lesse um relatório científico de um estudo envolvendo camundongos ou ratos, provavelmente ele só havia usado animais machos.

Rato em laboratório
Uso predominante de camundongos machos em experimentos não é detalhe; isso já trouxe consequências negativas reais à saúde de mulheres - Getty Images via BBC

Isso significa que, mesmo atualmente, se você for uma mulher e usar um medicamento que foi testado apenas em cobaias machos, não sabemos como esse tratamento vai te afetar.

Os cientistas presumiram por muito tempo que cobaias fêmeas responderiam da mesma forma que os machos em experimentos. Hoje, essa situação está mudando. Mais e mais estudos estão usando animais de ambos os sexos nos testes. Como consequência, novos conhecimentos estão surgindo sobre diferenças sexuais relevantes.

Por exemplo, há um crescente corpo de evidências mostrando diferenças complexas nos cérebros de roedores, relacionadas ao tamanho, à forma e à conexão das células nervosas.

Não surpreende que pesquisas estejam mostrando cada vez mais diferenças sexuais em questões médicas humanas. Por exemplo, as mulheres têm duas vezes mais chances de serem diagnosticadas com depressão do que os homens, e as diferenças entre os sexos também são claras na resposta das pessoas aos antidepressivos.

As mulheres têm uma resposta mais forte do que os homens aos inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS), enquanto os homens têm uma resposta melhor aos antidepressivos do tipo tricíclico.

Reações adversas

Excluir as fêmeas dos experimentos por tanto tempo teve consequências preocupantes para a saúde das mulheres.

Um exemplo são as reações adversas a medicamentos — que são as consequências não intencionais de tomar um remédio, como náuseas, dores de cabeça, convulsões e problemas cardíacos.

As mulheres normalmente têm o dobro do risco de reações adversas a medicamentos (embora os homens tenham riscos maiores em alguns tipos de efeitos colaterais).

Uma razão é que as mulheres, em média, são menores que os homens, mas a dosagem recomendada para muitos medicamentos é baseada neles.

Por exemplo, as mulheres que tomam betabloqueadores, usados para tratar problemas cardíacos, têm concentrações mais altas do medicamento no sangue.

Isso não ocorre apenas porque a mesma quantidade de medicamento em um volume menor de sangue resultará em uma concentração maior. Devido aos hormônios sexuais e à atividade enzimática distinta, as mulheres também metabolizam muitos medicamentos de forma diferente.

Mão de mulher pegando um comprimido em cartela
Se você for uma mulher e usar um medicamento que foi testado apenas em cobaias machos, não sabemos como esse tratamento vai te afetar - Getty Images via BBC

Por que as fêmeas eram excluídas?

Na ciência, gostamos de reduzir a variabilidade tanto quanto possível, para ter mais confiança de que qualquer mudança em um animal ou humano se deve ao experimento que fizemos.

As fêmeas foram amplamente excluídas dos testes com cobaias e humanos por conta do ciclo menstrual. Níveis hormonais flutuantes tornam os dados difíceis de interpretar, os resultados mais variáveis e a pesquisa mais cara.

Enquanto os homens têm os mesmos hormônios esteroides sexuais, os níveis de hormônios femininos aumentam e diminuem. Isso pode afetar o funcionamento do cérebro, do comportamento e a resposta à medicação.

No entanto, o ciclo estral dos roedores (análogo ao ciclo menstrual em humanas) é muito mais curto do que nas mulheres, com apenas quatro ou cinco dias de duração. Pesquisas na última década mostraram que, como resultado, o comportamento das fêmeas de roedores não é tão variável.

Em parte, a priorização dos homens nos ensaios clínicos também ocorreu porque mulheres em idade fértil podem estar grávidas e ainda não saber disso. A tragédia da talidomida alimentou essa mentalidade.

A talidomida foi desenvolvida na década de 1950 como um sedativo e tornou-se um tratamento popular para o enjoo matinal — mas a droga não havia sido testada em animais prenhes ou humanos.

Os médicos logo perceberam que a talidomida estava ligada a anormalidades de desenvolvimento em crianças nascidas de mães que tomavam o medicamento. Mas foi tarde demais para as estimadas 10 mil crianças em todo o mundo nascidas com pernas e braços subdesenvolvidos e outros problemas congênitos.

As coisas estão melhorando?

Há um crescente campo de pesquisa que estuda a interação entre medicamentos e o ciclo menstrual, a gravidez e a contracepção hormonal.

Por exemplo, alguns medicamentos antiepilépticos podem reduzir a eficácia da contracepção hormonal, enquanto a contracepção pode reduzir a eficácia de alguns medicamentos antiepilépticos no controle de convulsões.

Mas, por conta dos muitos anos em que as mulheres foram excluídas dos estudos, ainda há muito que não sabemos.

Nos Estados Unidos, a inclusão de mulheres nos ensaios clínicos só se tornou obrigatória por lei na década de 1990. Cerca de 30 anos depois, levantamentos mostram que aproximadamente metade dos participantes de ensaios financiados pelo National Institutes of Health (NIH, a agência americana de pesquisa médica) é atualmente de mulheres.

Há também iniciativas evoluindo para integrar o sexo biológico (definido geneticamente) e o gênero (a autoidentidade de uma pessoa) no projeto, na análise e no relatório dos ensaios clínicos.

Muitas revistas científicas estão se unindo no esforço de publicar apenas estudos que tenham considerado o sexo no processo, do início ao fim.

Enquanto isso, demorou muito para que camundongos fêmeas fizessem parte das pesquisas.

Em 2014, o NIH, um dos maiores financiadores de pesquisa médica do mundo, anunciou que todos os pedidos de verbas precisavam incluir um equilíbrio de células e cobaias machos e fêmeas. Desde então, essa política foi adotada por grandes financiadores de pesquisa em outros países, como no Canadá e na União Europeia.

As mudanças levam tempo. Geralmente, leva de 10 a 15 anos para um novo medicamento ser desenvolvido, embora os prazos variem muito. Além disso, há os ensaios clínicos, que podem levar muito tempo dependendo da dificuldade de recrutar participantes.

Estamos caminhando para uma era de medicina personalizada, onde os medicamentos podem ser prescritos com base em um diagnóstico individual, com intervenções direcionadas baseadas na compreensão de como os genomas de um paciente individual (conjunto de instruções de DNA) afetam a resposta ao tratamento.

Mas as mulheres perderão muitos dos benefícios se não entendermos exatamente como a medicação que lhes é prescrita as afeta.


Sarah Bailey é professora de neurofarmacologia na Universidade de Bath, no Reino Unido.

Este artigo foi publicado no The Conversation e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original em inglês.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.