No Peru, um deserto rico em fósseis está sendo tomado por assentamentos humanos

Paleontólogos desenterraram no deserto de Ocucaje o esqueleto do animal mais pesado do mundo

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Mitra Taj
Ocucaje (Peru) | The New York Times

Há milhões de anos, esse deserto no Peru era um lugar de encontro de criaturas marinhas extraordinárias: baleias que caminhavam, golfinhos com rosto de morsa, tubarões com dentes do tamanho de um rosto humano, pinguins de penas vermelhas, preguiças aquáticas.

Esses animais se reproduziam nas águas mais calmas de uma lagoa rasa resguardada por colinas que ainda hoje adornam a paisagem. Em dado momento, os movimentos tectônicos separaram a terra do mar. Há mais de 10 mil anos, chegaram os seres humanos, e, com eles, a arte, a religião e uma arquitetura monumental.

Os detalhes desse passado remoto foram meticulosamente reconstituídos pelos pesquisadores, que se basearam em vestígios encontrados em ossos e túmulos espalhados pela bacia de Pisco, camada espessa de sedimento rica em fósseis que cobre uma área de 518 quilômetros quadrados de terreno árido e áreas ribeirinhas entre a Cordilheira dos Andes e a costa do Pacífico no sul do Peru.

Os restos fósseis de uma baleia de 10 milhões de anos no deserto de Ocucaje, perto de assentamentos informais no Peru
Os restos fósseis de uma baleia de 10 milhões de anos no deserto de Ocucaje, perto de assentamentos informais no Peru - Marco Garro - 12.ago.23/The New York Times

As descobertas na região vêm sendo feitas em um ritmo acelerado nas últimas décadas, com pelo menos 55 novas espécies de vertebrados marinhos identificadas até o momento. Em agosto, os paleontólogos apresentaram o que pode ser a descoberta mais notável da região até agora: o Perucetus colossus, baleia semelhante ao peixe-boi, que é agora considerada o animal mais pesado que já existiu.

"Parece que há sempre algo novo vindo do Peru", comentou Nicholas Pyenson, paleontólogo e curador de fósseis de mamíferos marinhos do Smithsonian Institution.

Entretanto, não é apenas a abundância de fósseis que torna a região especial. "Em várias ocasiões, descobrimos aqui espécies que simplesmente não existem em nenhum outro lugar, e o motivo disso ainda é um mistério", acrescentou Pyenson.

Mas os paleontólogos peruanos alertam que essa riqueza singular de ossos está sendo ameaçada por um dos modos mais sorrateiros de perda do patrimônio natural e cultural de uma nação: o desenvolvimento não planejado.

Na cidade agrícola de Ocucaje, que serve como ponto de acesso à bacia de Pisco, o deserto está sendo rapidamente loteado por empreendimentos imobiliários, favelas e granjas. Novas estradas estão sendo construídas, atravessando áreas de deserto e dunas moldadas pelo vento. Ao longo dessas vias, barricadas de lama e cercas com arame farpado foram erguidas.

"Estamos sendo retalhados. Aqui era um campo aberto. Não havia estradas antes, só a terra. Mas nos últimos anos tudo foi cercado", disse Laura Peña, prefeita de Ocucaje, enquanto examinava os retângulos demarcados na areia nas proximidades da cidade.

Segundo Peña, essa transformação foi tão rápida que ela ainda está tentando descobrir quem é o dono do quê, e até que ponto esses loteamentos estão de acordo com a legislação. Como muitos outros prefeitos de cidades pequenas, Peña não possui um mapeamento detalhado das terras em seu distrito e enfrenta dificuldades para acompanhar as decisões tomadas pelos governos da província e da região. Ela disse que muitas áreas contêm fósseis ou sítios pré-colombianos que deveriam ter sido tombados anos atrás.
O crescimento desordenado tem sido um desafio para a preservação das antigas ruínas antigas do Peru, sobretudo na região costeira árida, onde as civilizações pré-colombianas floresceram nos vales dos rios, hoje habitados pelos peruanos.

No distrito de Ocucaje, Manuel Uchuya, de 73 anos, mora em uma favela no alto de um centro cerimonial pertencente à cultura pré-colombiana de Paracas. Há mais de um século, o arqueólogo alemão Max Uhle identificou várias múmias com pelo menos mil anos de idade ao fazer escavações no local. "Não tínhamos outro lugar para onde ir", afirmou Uchuya.

O local já tinha sido alvo de saques quando, cerca de duas décadas atrás, Manuel Uchuya e sua esposa decidiram construir um barraco em um terreno pequeno onde passaram a viver durante a aposentadoria. Perto do barraco, ainda eram visíveis os vestígios de uma antiga parede de adobe, remanescente da era pré-colombiana. No chão, encontravam-se fragmentos de cerâmica, espigas de milho e pedaços de tecido avermelhado.

Ali Altamirano, paleontólogo do Museu de História Natural de Lima, no Peru, e membro do Instituto de Geologia, Mineração e Metalurgia, trabalha em uma das salas de pesquisa da instituição
Ali Altamirano, paleontólogo do Museu de História Natural de Lima, no Peru, e membro do Instituto de Geologia, Mineração e Metalurgia, trabalha em uma das salas de pesquisa da instituição - Marco Garro - 11.ago.23/The New York Times

Por causa do enorme déficit habitacional do Peru, os bairros tendem a ser construídos primeiro e legalizados depois. Nos últimos 15 anos, 90% do desenvolvimento urbano se deu de maneira informal, ou seja, fora das regulamentações, como observou o advogado Andres Devoto.

Na região árida entre os Andes e o Oceano Pacífico, que abriga a maior parte da população e da atividade econômica do Peru, tem havido uma diminuição na disponibilidade de terras, o que vem estimulando a especulação imobiliária e resultando em reivindicações por assentamentos em áreas cada vez mais improváveis.

Ocucaje, recanto remoto na região de exportação agrícola de Ica, no sul do Peru, abriga uma população de menos de 5.000 habitantes. Essa comunidade não possui um sistema de saneamento e conta com um orçamento anual de cerca de US$ 30 mil para projetos de obras públicas. Antigamente, seus moradores trabalhavam sem remuneração nas fazendas locais, até a reforma agrária em 1969. Hoje, a maioria dos residentes planta, colhe algas marinhas ou busca emprego nas cidades como operários.

Na praça central de Ocucaje, as crianças brincam com a escultura de um megalodonte, tubarão três vezes maior do que o tubarão-branco, enquanto um museu local exibe fósseis para os turistas.

Mario Urbina Schmitt, paleontólogo radicado na capital, Lima, e um dos mais prolíficos caçadores de fósseis do Peru, disse que ficou chocado ao retornar à região em 2021, depois do período de bloqueios em consequência da Covid. Enquanto muitos peruanos enfrentavam restrições, as reivindicações e ocupações de terras na área explodiram. "É como ir ao Grand Canyon, e de repente ver placas por toda parte dizendo: 'Isso é meu!'", comparou.

Mario Urbina Schmitt, paleontólogo do Museu de História Natural de Lima, descobridor do 'Perucetus colossus', talvez o animal mais pesado já registrado até hoje, em sua casa, em Ocucaje
Mario Urbina Schmitt, paleontólogo do Museu de História Natural de Lima, descobridor do 'Perucetus colossus', talvez o animal mais pesado já registrado até hoje, em sua casa, em Ocucaje - Marco Garro - 11.ago.23/The New York Times

Os arqueólogos conhecem Ocucaje como uma intersecção de civilizações antigas —lugar onde os povos paracas e nazca esculpiram figuras de animais e guerreiros nas encostas das colinas, e os incas abriram um caminho para conectar a região ao seu império.

Os paleontólogos classificam a região como um dos melhores locais do mundo para estudar a evolução de animais marinhos. A cidade recebe, em média, apenas um milímetro de chuva por ano, e esse clima seco ajudou a preservar até mesmo a cor vermelha das penas do pinguim Inkayacu, com um metro e meio de altura, e os filtros semelhantes a pelos encontrados na boca das baleias.

"Em matéria de variedade e abundância, essa área é mais do que um Patrimônio Mundial da Unesco. É como se você tivesse um Wadi al-Hitan de muitos períodos diferentes", destacou Pyenson, fazendo uma analogia com o famoso sítio arqueológico de fósseis marinhos no Egito.

Urbina Schmitt, que dedicou quatro décadas à exploração do deserto de Ocucaje, contou que ainda encontra uma quantidade impressionante de fósseis, o que lhe permite ser seletivo em suas descobertas: "Qualquer pessoa pode encontrar uma baleia normal, elas estão por todo lado. Nem conto essas. Estou em busca das criaturas novas, das estranhas."

Há dez anos, ele avistou uma vértebra de Perucetus incrustada na encosta de um penhasco. A revelação dessa nova espécie, publicada no mês passado em um artigo na revista Nature do qual ele foi coautor, foi comemorada no Peru.

Qualquer pessoa pode encontrar uma baleia normal, elas estão por todo lado. Nem conto essas. Estou em busca das criaturas novas, das estranhas

Mario Urbina Schmitt

paleontólogo

No Museu de História Natural de Lima, onde as vértebras e parte da pélvis de Perucetus estão em exposição, os visitantes fazem fila para tirar uma selfie ao lado de Urbina Schmitt. "É como se tivéssemos vencido a Copa do Mundo", comentou ele.

Os paleontólogos do Peru têm a esperança de que esse entusiasmo se traduza em maior apoio aos seus esforços na preservação de Ocucaje.

Há anos, autoridades governamentais peruanas debatem a criação de algum tipo de parque em Ocucaje. Mas o progresso tem sido mínimo, em parte por causa de desentendimentos sobre qual instituição estatal deveria liderar essa iniciativa.

Em 2021, o Instituto de Geologia, Mineração e Metalurgia, vinculado ao Ministério de Minas e Energia, assumiu a responsabilidade de supervisionar a proteção de fósseis, retirando-a do Ministério da Cultura. No entanto, está atualmente avaliando quais áreas devem ser designadas como protegidas e planeja submeter uma nova proposta para incluir a região na lista de Patrimônio Mundial da Unesco, informou César Chacaltana, diretor de paleontologia do instituto.

Enquanto isso, pelo menos quatro projetos imobiliários estão anunciando lotes para a construção de casas no deserto de Ocucaje. Em vídeos compartilhados nas redes sociais, um deles cita a descoberta do Perucetus como um motivo para investir na região, enquanto outro promove passeios de moto no deserto.

De acordo com Chacaltana, nenhum desses projetos solicitou a devida licença para fazer uma verificação prévia da presença de fósseis em seu terreno, como exigido por lei desde 2021, antes de iniciar qualquer construção. Ao que parece, máquinas pesadas já nivelaram o solo em algumas dessas áreas demarcadas, o que pode ter eliminado quaisquer restos. "Qualquer vestígio que pudesse existir na superfície teria sido destruído", disse Ali Altamirano, paleontólogo do instituto.

Peña suspeita que pelo menos algumas das áreas recém-demarcadas em Ocucaje podem estar relacionadas a atividades de grileiros, que organizam ocupações como meio de se apropriar de terras públicas. "E não sabemos quais são as intenções deles aqui em Ocucaje. Afinal, não há água aqui. Recebemos água só uma vez por semana."

Segundo as leis peruanas destinadas a proteger os cidadãos sem terra, os posseiros não podem ser removidos facilmente de terras públicas desocupadas e, com o tempo, têm o direito de solicitar título de propriedade e acesso aos serviços públicos às autoridades.

Mas grupos criminosos estão tirando proveito dessas proteções. Costumam contratar indivíduos para montar barracos em terrenos desocupados e, posteriormente, exigem títulos de propriedade que podem ser vendidos ou reutilizados. Em outras situações, recorrem à violência ou a subornos para obter aprovações de autoridades locais.

Algumas das áreas cercadas em Ocucaje revelam apenas sinais discretos de ocupação. Nas proximidades de Cerro Blanco, onde placas desgastadas indicam agrupamentos de fósseis de baleias para os visitantes, encontra-se uma única casa de tijolos exposta ao sol, desprovida de acesso à água e sem qualquer sinal visível de ocupação. "Nunca vemos ninguém nessa casa. Não parece ser obra de uma família necessitada", observou Elvis Ormeño, guia turístico local.

Os ventos que açoitam as dunas do deserto ainda escondem e revelam vestígios do passado remoto; é preciso ter olhos treinados para vê-los. Paleontólogos e arqueólogos temem que o desenvolvimento desenfreado em Ocucaje possa comprometer descobertas potencialmente valiosas antes que sejam reveladas.

"Você está ali dia após dia, fazendo seu trabalho, e pode não ver um geoglifo por causa da forma como o sol incide sobre a paisagem. E então, quando você vê, as rochas se alinham e você percebe a presença de um geoglifo", disse Lisa DeLeonardis, historiadora de arte da Universidade Johns Hopkins.

Os geoglifos —desenhos em grande escala criados mediante a raspagem do solo ou o alinhamento de rochas— costumavam ser atribuídos exclusivamente à civilização nazca, cujas famosas figuras se estendem pelo deserto cerca de 80 quilômetros ao norte. Mas, de acordo com DeLeonardis, os antigos geoglifos dos paracas estão sendo cada vez mais descobertos nas colinas de Ocucaje e nos vales próximos.

Uma moradora, Mirtha Mendocilla, de 28 anos, relembrou o dia em que levou seu filho e amigos dele para ver um geoglifo que os moradores locais haviam avistado não muito longe da cidade. No entanto, quando chegaram lá, encontraram cercas e uma placa que dizia "Propriedade privada". "Como assim, propriedade privada? Isso é nosso patrimônio. Precisamos preservá-lo antes que seja danificado", afirmou ela.

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