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Físicos da USP tentam modernizar Pelletron, acelerador de núcleos atômicos mais potente do país

A ideia é buscar parceria para remodelar instrumento, inaugurado em 1972, e mantê-lo em operação

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São Paulo | Revista Pesquisa Fapesp

Instalado num prédio de nove andares construído especialmente para abrigá-lo no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), o acelerador de partículas do Laboratório Aberto de Física Nuclear (LAFN) foi inaugurado com pompa em janeiro de 1972. Cientistas vestiram terno e gravata para mostrar as novas instalações às autoridades. A banda de música da Polícia Militar recebeu os convidados na entrada do edifício com a marcha "Pra Frente, Brasil", que embalou a seleção brasileira na Copa de 1970 e depois foi adotada pela propaganda do regime militar.

Batizado como Pelletron, o acelerador era visto como um passaporte para o futuro, um instrumento que aproximaria a ciência brasileira da fronteira do conhecimento numa área que parecia essencial para o desenvolvimento tecnológico do país. Formou gerações de pesquisadores e continua de pé, em sua torre de concreto, mesmo após a entrada em operação de máquinas maiores e mais modernas.

A imagem mostra um close-up detalhado de equipamentos científicos com uma câmara central brilhante, possivelmente para medição ou experimentação. Seções cilíndricas metálicas, cabos e hastes cercam a câmara, todos fazendo parte de um aparato complexo. Algumas partes estão envoltas em isolamento reflexivo, indicando um ambiente preciso e controlado. A maquinaria sugere operações técnicas avançadas, possivelmente dentro de um laboratório de pesquisa.
Medidor de vácuo, próximo à fonte de íons do Pelletron da USP - Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa Fapesp

Passado mais de meio século, físicos da USP estão em busca de parcerias para modernizá-lo e mantê-lo em operação. Equipamentos desse tipo costumam ser desativados quando ficam obsoletos ou os custos operacionais elevados superam os benefícios obtidos pelos cientistas.

O acelerador Tevatron, que permitiu a descoberta da partícula atômica conhecida como quark top, foi inaugurado nos Estados Unidos em 1983 e desativado em 2011, pouco mais de 15 anos após a identificação do quark top. Era bem maior que o Pelletron, mas os norte-americanos concluíram que não valia mais a pena pagar para mantê-lo e decidiram apostar em equipamentos mais potentes.

O Pelletron é um acelerador eletrostático, em que grandes quantidades de energia produzem um campo elétrico poderoso, capaz de impulsionar átomos ionizados (carregados eletricamente) a cerca de 20% da velocidade da luz. O equipamento promove colisões de núcleos atômicos, que revelam detalhes novos sobre a estrutura das partículas e as interações entre elas.

O acelerador tem viabilizado pesquisas de vários tipos. Na física básica, os cientistas investigam o comportamento instável dos chamados núcleos exóticos, que têm mais prótons ou nêutrons do que os núcleos estáveis dos mesmos elementos químicos. O Ribras (Feixes de Íons Radioativos no Brasil), um dos sistemas conectados ao Pelletron, instalado em 2004, é dedicado a esses estudos.

Um sistema mais novo, que entrou em operação em 2016, permite analisar efeitos causados por radiação em dispositivos eletrônicos. Nos últimos anos, foi usado para aprimorar circuitos desenvolvidos para satélites brasileiros, dentro do projeto "Circuitos Integrados Tolerantes à Radiação" (Citar), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Existem mais quatro aceleradores da mesma família em funcionamento na USP e em outras universidades brasileiras, mas são de porte muito menor, usados em geral para análise de materiais. Com capacidade para alcançar tensão elétrica equivalente a 8 milhões de volts, o Pelletron do LAFN é o único desse porte no país e um dos maiores em operação no hemisfério sul. A Argentina possui uma máquina capaz de gerar tensão de 20 milhões de volts, mas o custo operacional elevado impede que chegue a tanto.

"O Pelletron ainda é estratégico para o país", afirma o físico Leandro Gasques, que assumiu a direção do laboratório neste ano. "Formamos recursos humanos, usamos tecnologia de ponta nos sistemas acoplados ao acelerador e somos bastante competitivos, como mostram os resultados que temos publicado em revistas internacionais de prestígio."

O acelerador da USP contribuiu para a formação de 108 mestres e 75 doutores desde 1975. Nos últimos anos, seus pesquisadores publicaram em média oito artigos científicos por ano com resultados obtidos no Pelletron.

"Ele ainda é muito útil para investigar problemas interessantes para a física básica, apesar da migração de muitos pesquisadores para a área de grandes aceleradores, e para pesquisas mais aplicadas", afirma o físico da USP Marcelo Munhoz, um dos organizadores do livro "50 anos do Acelerador de Partículas Pelletron: Vozes de uma História" (Instituto de Física da USP, 2022).

O preço do pioneirismo

A aquisição do equipamento foi resultado de uma iniciativa do físico Oscar Sala (1922-2010), que foi professor do IF-USP, diretor científico (1969-1975) e presidente do Conselho Superior (1985-1995) da Fapesp. Ele tinha sido enviado aos Estados Unidos para estudar o assunto após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e, na volta, projetara o primeiro acelerador eletrostático construído no Brasil, instalado na USP na década de 1950, com participação da indústria nacional e dinheiro da Fundação Rockefeller. Nos anos 1960, Sala concluiu que ele ficara obsoleto e era preciso buscar um substituto.

A oportunidade surgiu em 1965, quando um grupo liderado pelo físico norte-americano Raymond Herb (1908-1996), que ajudara Sala a desenhar a primeira máquina, fundou uma empresa para desenvolver um novo tipo de acelerador, a National Electrostatics Corporation (NEC), nos Estados Unidos.

Sua principal inovação era o meio utilizado para o transporte de carga elétrica dentro do equipamento, uma corrente feita de pellets metálicos, pequenos cilindros conectados a peças de material plástico. Surgiu assim o nome da máquina, Pelletron, marca registrada pela NEC.

O novo acelerador prometia maior eficiência e menor custo de manutenção que a dos concorrentes, mas era um produto novo cujo desempenho ainda não tinha sido testado. Sala convenceu a USP e o governo federal a apostar no Pelletron para não correr o risco de ficar para trás na corrida tecnológica. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) destinou o equivalente a US$ 18 milhões em valores corrigidos pela inflação à aquisição do equipamento.

O Pelletron importado pelo Brasil foi o primeiro vendido pela NEC, que depois adotou algumas mudanças feitas em São Paulo, que se mostraram melhores que as originais. Para a equipe da USP, o pioneirismo teve um custo.

"Era como um apartamento comprado na planta, sem carpete, iluminação e armários", compara o físico Ivã Gurgel, coordenador do acervo histórico do IF-USP e coorganizador da coletânea de entrevistas sobre a história do acelerador.

Foi preciso desenvolver uma fonte de íons para injeção das partículas atômicas na máquina, dispositivos para distribuí-las entre os instrumentos acoplados na outra ponta, e sistemas para coletar, processar e analisar os dados dos experimentos em computadores.

A fonte de íons fica no oitavo andar do prédio em que o acelerador está instalado. O feixe de íons formado pelo material introduzido no equipamento é atraído para o tubo acelerador, no interior de um tanque que ocupa o espaço de três andares. Portas de concreto revestidas de aço foram projetadas para impedir vazamentos de radiação. De lá, as partículas aceleradas são direcionadas por eletroímãs e outros aparelhos para os sistemas acoplados à saída do equipamento, na área experimental que fica no subsolo.

Os países ricos desativaram a maioria dos aceleradores do porte do Pelletron porque tinham recursos para construir instalações muito maiores e fazer outro tipo de pesquisa. Mas não desativaram todos e vários aceleradores semelhantes ainda contribuem com pesquisas,

Alinka Lépine-Szily

professora da USP

Desde cedo, Sala e sua equipe fizeram uma opção pelo desenvolvimento de tecnologias na própria universidade. O grupo tinha um computador de grande porte da IBM, e a empresa chegou a oferecer um mais novo com os sistemas de detecção de dados prontos para usar, mas a oferta foi recusada.

"Se nós comprássemos uma unidade sofisticada dessa, complexa, sem experiência, na primeira pane que ela oferecesse, estaríamos perdidos", contou Sala em depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas (FGV), concedido em 1977.

Como a economista Tharsila Reis de Medeiros observa em sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2012, a opção pelo desenvolvimento local dos sistemas deu bons resultados por algum tempo, mas acabou posta em xeque com o surgimento dos microcomputadores e outros avanços que deixaram o Brasil para trás na informática.

Vários dispositivos do Pelletron foram atualizados nos últimos anos, mas a falta de um fluxo contínuo de recursos para manutenção e modernização do equipamento fez com que as reformas ocorressem com atraso e obrigou os cientistas a dedicar boa parte de seu tempo à solução de problemas técnicos.

"Aqui, todo mundo tem que arregaçar a manga e batalhar pelos dados", diz o físico Valdir Scarduelli, recém-contratado para o corpo docente do instituto e vice-diretor do laboratório. "Nossa formação acaba sendo mais completa por causa disso."

Nove professores e 15 técnicos estão envolvidos com a operação do Pelletron hoje. Em 2015, o laboratório começou a investir no desenvolvimento de um sistema de controle digital para os dispositivos ópticos usados para direcionar o feixe de partículas dentro do acelerador. O objetivo é permitir que os ajustes sejam feitos remotamente na sala de controle da máquina, sem que alguém precise subir e descer as escadas do prédio para executá-los. O trabalho tem sido feito aos poucos por um técnico da equipe e deve levar alguns anos para ser concluído.

É uma realidade diferente da encontrada pelos cientistas nos poderosos aceleradores construídos no exterior nos últimos anos, como o Grande Colisor de Hádrons (LHC), operado pela Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (CERN), na fronteira entre a França e a Suíça. "Lá, eu nem chego perto do acelerador e posso me concentrar na análise dos dados", afirma Munhoz, que trabalha num projeto internacional no LHC. Em operação desde 2008, o equipamento é o maior acelerador de partículas do mundo, capaz de alcançar até 7 trilhões de volts de energia.

"Os países ricos desativaram a maioria dos aceleradores do porte do Pelletron porque tinham recursos para construir instalações muito maiores e fazer outro tipo de pesquisa. Mas não desativaram todos e vários aceleradores semelhantes ainda contribuem com pesquisas, por exemplo, para estudar reações nucleares em estrelas ou verificar pequenos desvios das previsões do Modelo Padrão da Física de Partículas [teoria sobre o comportamento das partículas e a interação entre elas desde o início do Universo]", diz a física húngaro-brasileira Alinka Lépine-Szily, professora da USP que dirigiu o Pelletron entre 2007 e 2011. "O Brasil não tem condição de ter um laboratório muito maior, mas ainda podemos fazer muito com esse equipamento."

Fotografia aérea em preto e branco de um local industrial, mostrando um grande tanque cilíndrico com uma abertura redonda na parte superior, cercado por uma variedade de máquinas e equipamentos. Trabalhadores são visíveis ao redor do tanque, um olhando para dentro da abertura, enquanto outro cuida de tarefas no chão
Espaço para o tanque do acelerador, com três andares - Gurgel, I. e Munhoz, M. G. et al. (orgs.). '50 anos do Acelerador de Partículas Pelletron: Vozes de uma História'

No início dos anos 1980, quando o Pelletron completou sua primeira década em atividade, o próprio Sala percebeu a necessidade de dar um passo além para manter o laboratório em condições competitivas. A alternativa que propôs foi um convênio com o Laboratório Nacional Argonne, nos Estados Unidos, que havia desenvolvido outro tipo de equipamento para o estudo de núcleos atômicos, usando radiofrequências para acelerar as partículas. Ele poderia ser acoplado à saída do Pelletron para amplificar os efeitos da energia gerada pelo equipamento.

O instituto criou o Laboratório do Acelerador Linear (Linac), no mesmo prédio do Pelletron, e comprou parte dos aparelhos necessários, mas a montagem do equipamento desenhado no Argonne não foi concluída até hoje. Sala sofreu um derrame cerebral e perdeu condições de seguir à frente do empreendimento. Scarduelli estima que a conclusão do projeto permitiria dobrar a energia gerada pelo Pelletron, mas faltam recursos, técnicos e professores que possam se dedicar exclusivamente a ele.

A participação dos físicos da USP no desenvolvimento dos chips para o programa de satélites pode ter aberto caminho para uma solução. No projeto Citar, concluído neste ano, o Pelletron foi usado para testar os componentes criados por outros laboratórios e indicar ajustes necessários. O equipamento, porém, não cobre todos os testes exigidos para certificação dos dispositivos de acordo com padrões internacionais. Em tese, a conclusão da montagem do Linac poderia resolver o problema, permitindo que o Pelletron oferecesse serviços de certificação a fabricantes dos circuitos.

O financiamento para esse avanço poderia vir do lançamento de uma nova fase do Citar, atualmente sendo discutida pelo governo federal com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e outras instituições que participaram do programa. Em maio deste ano, ao final de um evento que comemorou os 50 anos do Pelletron, o então diretor do LAFN do IF-USP, Rubens Lichtenthäler Filho, mencionou essa possibilidade ao ser questionado sobre o futuro. "A última coisa que podemos fazer é desistir", afirmou. "Nesse caso, acho que realmente tem uma luz no fim do túnel."

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