Descrição de chapéu Revista Pesquisa Fapesp

Há 150 anos, brasileiro fez viagem de 48 dias para calcular a distância da Terra ao Sol

Astrônomo e engenheiro carioca Francisco Antonio de Almeida Júnior foi de navio ao Japão

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Sarah Schmidt
Revista Pesquisa Fapesp

Em 9 de dezembro de 1874, em Nagasaki, no Japão, aonde chegou após uma viagem de 48 dias de navio, o astrônomo e engenheiro carioca Francisco Antonio de Almeida Júnior (1851-1928) descreveu deste modo a rara passagem de Vênus diante do Sol: "Às 10 horas e alguns minutos assistimos à entrada triunfal de Vênus nas regiões solares, e já havia decorrido mais de um século que a formosa deusa não se dignava permitir aos mortais testemunharem suas ardentes visitas ao rei dos astros".

O relato integra seu livro "Da França ao Japão: Narração de Viagem e Descrição Histórica, Usos e Costumes dos Habitantes da China, do Japão e de outros países da Ásia", publicado em 1879.

Considerado o primeiro astrônomo brasileiro a acompanhar um trânsito de Vênus e o primeiro cidadão do país a visitar o Japão, Almeida integrou uma das equipes francesas, já que estudava em Paris desde 1872. Uma equipe italiana tinha ido à Índia, uma francesa, à Nova Zelândia e uma britânica, ao Havaí, todas com o mesmo objetivo: aprimorar os valores da paralaxe solar. Esse termo "indica alteração na situação aparente do astro a que se refere", explicou Almeida Júnior no livro "A Paralaxe do Sol e as Passagens de Vênus", de 1878. Ou seja, é o deslocamento aparente de um objeto celeste –nesse caso, Vênus– sobre o disco solar, visto de pontos distintos do globo.

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Vênus (círculo escuro) sobre o disco solar em 9 de dezembro de 1874 - Guillemin, A. Le Ciel. 1877

Com os dados sobre o deslocamento do planeta sobre o disco solar, os astrônomos calculavam a distância entre a Terra e o Sol, a chamada unidade astronômica. "Eles estavam em busca de valores mais precisos das dimensões do Sistema Solar", explica o astrônomo Rundsthen Nader, do Observatório do Valongo e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que estudou a participação brasileira nos trânsitos de Vênus de 1874 e de 1882 em seu doutorado, concluído em 2015.

O fenômeno de 1874 foi o oitavo registrado, na trilha aberta pelos astrônomos britânicos Jeremiah Horrocks (1618-1641) e William Crabtree (1610­‑1644). Separadamente, de suas casas, perto de Preston e de Manchester, ambas no Reino Unido, eles foram os primeiros a fazer uma observação científica da passagem de Vênus diante do Sol, em 4 de dezembro de 1639.

"Essa observação teve percalços e Horrocks e Crabtree nem tentaram determinar a paralaxe do Sol", conta o astrofísico Oscar Matsuura, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e organizador do livro "História da Astronomia no Brasil" (Cepe, 2014). "Depois, Horrocks, com base no diâmetro angular [diâmetro aparente, medido da Terra, em graus] de Vênus, estimou a distância do Sol em 97 milhões de km [quilômetros], indicando que o Sistema Solar era muito maior do que se acreditava na época."

O astrônomo e matemático italiano Giovanni Cassini (1625-1712), em Paris, e seu assistente Jean Richer (1630­‑1696), em Caiena, na Guiana Francesa, observando a paralaxe de outro planeta, Marte, obtiveram em 1672 a primeira medida confiável da unidade astronômica, de 138 milhões de km, que permaneceu por cerca de um século.

A observação da passagem –ou trânsito– de Vênus e Mercúrio, os dois planetas mais próximos do Sol, era então um dos principais meios para calcular a distância da Terra à nossa estrela mais próxima. Mercúrio põe-se à frente do Sol cerca de 13 ou 14 vezes a cada século, enquanto os trânsitos de Vênus ocorrem em ciclos de 243 anos, que começam com uma primeira passagem, em dezembro; oito anos depois, de novo em dezembro, há uma segunda; há um intervalo de 121,5 anos até a terceira, em junho; oito anos depois, também em junho, ocorre o quarto trânsito; o seguinte se dá 105,5 anos depois, também em dezembro.

A ideia de usar a passagem de um planeta para calcular a distância entre a Terra e o Sol foi proposta em 1716 pelo astrônomo britânico Edmond Halley (1656-1742), depois de testemunhar um trânsito de Mercúrio em 1677 na ilha de Santa Helena. Sua hipótese era de que seria possível calcular a distância da Terra ao Sol por triangulação, medindo a passagem de outro planeta a partir de distintos pontos da Terra. "A posição do trânsito de Mercúrio era mais difícil de observar, por fazer uma trajetória pouco acima do horizonte. Então, naquela época, Vênus era a esperança", diz Nader.

Em um capítulo do livro "Epistemología e História de La Astronomía" (Universidade de Córdoba, 2023), os físicos Maria Romênia da Silva e André Ferrer Pinto Martins, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), observam que Almeida era um personagem-chave da astronomia brasileira da época e "exprime o desejo e o empenho de uma geração de intelectuais interessados em compreender melhor o país, com vias de fazê-lo avançar com base nos referenciais europeus".

Almeida chegou a Paris em 1872, com um colega do Imperial Observatório do Rio de Janeiro, o astrônomo Julião de Oliveira Lacaille (1851-1926), ambos com bolsas de estudo concedidas por dom Pedro 2º (1825-1891). "Até então havia uma astronomia utilitarista no Brasil, que servia para determinar horários e ajudar nas medições geográficas para a construção de estradas, enquanto na Europa os pesquisadores já procuravam entender a composição química das estrelas", observa Nader.

As mudanças na astronomia brasileira haviam começado um ano antes, em 1871, quando o imperador convidou o astrônomo francês Emmanuel Liais (1826­‑1900) para dirigir o Imperial Observatório do Rio de Janeiro. Liais aceitou, sob duas condições: a instituição deixaria de ser voltada para treinamentos de alunos de academias militares e investiria em pesquisa astronômica, inclusive em ciência básica. "Não se pode negar que o imperador preparou as condições para que o Brasil participasse de forma marcante no esforço internacional para observar o trânsito de Vênus em 1882", destaca Matsuura.

Em Nagasaki, Almeida Júnior operou um equipamento inovador, o revólver fotográfico, desenvolvido pelo líder da equipe francesa, o astrônomo Pierre Jules Janssen (1824-1907). O aparelho funcionava como uma filmadora rudimentar e foi usado para gravar imagens do momento em que Vênus tocou o disco solar em sequência com intervalos de tempo muito curtos em placas de vidro com emulsão de prata. O resultado, porém, não foi o esperado. "As imagens ficaram granuladas, o que impediu uma análise minuciosa da posição do planeta", diz Nader. "A missão francesa em Nagasaki contribuiu muito pouco para o aprimoramento da paralaxe solar. De maneira geral, os dados de 1874 não foram muito diferentes do que já se tinha."

Em 1875, ainda na Europa, Almeida recebeu a comenda brasileira de Cavaleiro da Ordem da Rosa por sua participação na comissão científica francesa e voltou ao Rio de Janeiro no ano seguinte, como doutor em filosofia pela Universidade de Bonn, na Alemanha. "Ele fez uma tese sobre os movimentos do ar, motivado pelo fato de ter saído ileso de um tufão que deixou cerca de 8.000 mortos na cidade de Hong Kong quando viajava para o Japão com a comissão francesa", conta Silva.

A participação brasileira foi mais relevante na observação do trânsito de Vênus de 1882, dessa vez visível na América do Sul, América Central e no leste da América do Norte. Uma equipe ficou no Imperial Observatório, agora sob direção do astrônomo belga Luiz Cruls (1848-1908), e outras foram a Olinda, em Pernambuco, a Punta Arenas, no Chile, e à ilha de São Tomás, nas Antilhas.

Os gastos com as expedições motivaram debates sobre o financiamento da ciência no país. "Em 1874, houve algumas críticas sobre o envio de um astrônomo ao Japão, mas em uma dimensão muito menor", relata o historiador Jacques Pinto, da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Dessa vez, os ministérios do Império e da Marinha fizeram um pedido de 30 contos de réis, cada um, para a fabricação de lunetas, construção das casas de observação, transporte e pagamento dos pesquisadores.

Deputados e senadores dos partidos Liberal e Conservador votaram juntos contra a liberação da verba. "Predominava uma visão utilitarista, de que a ciência teria de se voltar apenas para a lavoura e para a agronomia", observa a historiadora Alexandra Aguiar, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que examinou o embate político em um artigo publicado em agosto de 2017 na revista Temporalidades. Por fim, em 30 de maio de 1882, apenas o pedido do Ministério do Império foi aprovado. Doações particulares completaram o restante da verba pedida para a missão das Antilhas, chefiada por Antônio Luís von Hoonholtz, o barão de Tefé (1837-1931).

Cruls chefiou a comissão de Punta Arenas e publicou as observações brasileiras em dezembro de 1887 nos Annales de L’Observatoire Impérial de Rio de Janeiro. De acordo com Nader, o valor final para a paralaxe solar obtido pela comissão brasileira foi de 147.826.661 km, porque Cruls não incluiu os erros associados às medidas, como fizeram as expedições de outros países. "Nos meios acadêmicos, os resultados da comissão brasileira foram bem-vistos", diz Nader.

Lacaille, que também havia estudado na França, chefiou a equipe que montou um ponto de observação em Olinda, mas não há registros da participação de Almeida Júnior em nenhuma das expedições brasileiras em 1882. Sua ausência "parece até hoje inexplicável, mesmo considerando as opiniões de astrônomos que não acreditavam na vantagem de observar as passagens de Vênus para determinar a paralaxe solar", comentou o astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão (1935-2014), do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), em um artigo de 2005 na revista Navigator.

Ao analisar as 94 páginas do livro "A Paralaxe do Sol", Silva verificou que Almeida indicava os horários em que Vênus provavelmente seria visível em cidades do Brasil, Chile, Peru, Estados Unidos, Canadá, França e Escócia em 1882. "Ele dá a entender que esperava ser convidado para integrar a comitiva brasileira", ela concluiu. A seu ver, as tensões políticas da época poderiam explicar o fato de ele ter sido deixado de lado: "Ele se alinhava com ideias liberais, e a atmosfera política em 1882 estava complicada para dom Pedro 2º, como já haviam indicado os embates pela verba para financiar as comissões científicas".

Nomeado diretor do Diário Oficial em julho de 1891, Almeida foi exonerado do cargo seis meses depois, quando o presidente Deodoro da Fonseca (1827­‑1892) renunciou. Depois, foi preso na gestão do presidente Floriano Peixoto (1839-1895) acusado de participar de uma conspiração contra o governo em abril de 1892. "Ele era crítico dos governos militares da Primeira República, conhecidos por serem autoritários", comenta Pinto.

No final do século 19, em vez de esperarem outras passagens de Vênus, astrônomos começaram a calcular a paralaxe solar usando asteroides, rochas de diversos tamanhos que orbitam o Sol. Depois, usaram radares e a velocidade da luz. Em 1976, a União Astronômica Internacional (IAU) fixou a distância entre o Sol e a Terra em 149.597.870 km.

Em 2008 e 2012, Vênus cruzou mais uma vez o disco solar. "Mas esses trânsitos não acrescentaram muito mais informações sobre essas medidas. Assim como os eclipses, hoje eles são mais eventos midiáticos, que ajudam a divulgar a ciência", pondera Nader. O planeta mais facilmente visível no céu deverá se postar novamente diante do Sol em 10 de dezembro de 2117 e em 8 de dezembro de 2125.

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