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The New York Times China

Em 5 pontos, por que a pandemia de Covid provavelmente surgiu em um laboratório

Cenários de transmissão natural são plausíveis, mas acidente é a explicação mais razoável de como tudo começou

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Alina Chan

Bióloga molecular no Instituto Broad e coautora de 'Viral: The Search for the Origin of Covid-19'

The New York Times

No dia 3 deste mês, Anthony Fauci voltou ao Congresso americano e testemunhou no subcomitê que investiga a pandemia de Covid-19. Ele foi questionado sobre vários tópicos relacionados à resposta do governo à crise sanitária, incluindo como o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (Niaid, na sigla em inglês), que ele dirigiu até 2022, apoiou um arriscado trabalho em um instituto chinês cuja pesquisa pode ter causado a pandemia.

Por mais de quatro anos, a política partidária tem atrapalhado a busca pela verdade sobre uma catástrofe que afetou a todos. O número de mortes por Covid-19 no mundo é estimado em ao menos 25 milhões, sendo mais de um milhão delas nos Estados Unidos.

Embora a forma como a pandemia começou tenha sido amplamente debatida, um volume crescente de evidências sugere que a pandemia provavelmente ocorreu porque um vírus escapou de um laboratório de pesquisa em Wuhan, China. Se isso for comprovado, será o acidente mais custoso na história da ciência.

O que sabemos até agora:

1. O vírus semelhante ao da Sars que causou a pandemia surgiu em Wuhan, cidade onde está localizado o principal laboratório do mundo de pesquisa de vírus semelhantes ao da Sars

Seguranças diante do Instituto de Virologia de Wuhan, na China, em fevereiro de 2021 - Thomas Peter - 3.fev.21/Reuters

No Instituto de Virologia de Wuhan, uma equipe de cientistas, liderada por Shi Zhengli, vinha procurando vírus semelhantes ao da Sars (sigla em inglês para síndrome respiratória aguda grave) havia mais de uma década.

Sua pesquisa mostrou que os vírus mais semelhantes ao Sars-CoV-2 circulam em morcegos que vivem a cerca de 1.600 quilômetros de Wuhan. Cientistas da equipe de Shi viajaram repetidamente para a província de Yunnan para coletar esses vírus e expandiram a busca para o sudeste asiático. Morcegos em outras partes da China não foram encontrados carregando vírus tão intimamente relacionados ao Sars-CoV-2.

Mesmo em locais onde esses vírus existem naturalmente perto de cavernas de morcegos no sudoeste da China e no sudeste asiático, cientistas argumentaram, em 2019, que a transmissão do coronavírus de morcegos para humanos era rara.

Quando o surto de Covid-19 foi detectado, Shi inicialmente se perguntou se o novo coronavírus tinha saído de seu laboratório, dizendo que nunca esperava que um surto como aquele ocorresse em Wuhan.

O Sars-CoV-2 é excepcionalmente contagioso e pode se espalhar de espécie para espécie como fogo. No entanto, não deixou nenhum rastro conhecido de infecção em sua origem ou em qualquer ponto ao longo de uma jornada de 1.600 quilômetros antes de surgir em Wuhan.

2. No ano anterior ao surto, o instituto de Wuhan, em colaboração com parceiros dos EUA, havia proposto a criação de vírus com a característica definidora do Sars-CoV-2

A virologista Shi Zhengli em laboratório, em Wuhan, na China, em 2017 - Johannes Eisele - 23.fev.17/AFP

O grupo de Shi estava fascinado com a forma como os coronavírus saltam de espécie para espécie. Para encontrar os vírus, eles coletaram amostras de morcegos e outros animais, bem como de pessoas doentes que viviam perto de animais portadores desses vírus ou com ligação ao comércio de animais selvagens. Grande parte desse trabalho foi feita em parceria com a EcoHealth Alliance, uma organização científica sediada nos EUA que, desde 2002, recebeu mais de US$ 80 milhões em financiamento federal para pesquisar os riscos de doenças infecciosas emergentes.

O laboratório realizou pesquisas arriscadas que resultaram em vírus mais infecciosos: coronavírus foram cultivados a partir de amostras de animais infectados e reconstruídos geneticamente e recombinados para criar novos vírus desconhecidos na natureza. Esses novos vírus passaram por células de morcegos, porcos, primatas e humanos e foram usados para infectar civetas e camundongos modificados com genes humanos. Esse processo forçou esses vírus a se adaptarem a novas espécies hospedeiras, e os vírus com mutações que permitiram que prosperassem emergiram como vencedores.

Até 2019, o grupo de Shi havia publicado um banco de dados descrevendo mais de 22 mil amostras de vida selvagem coletadas. Mas o acesso externo foi interrompido em 2019, e o banco de dados não foi compartilhado com colaboradores americanos mesmo depois que a pandemia começou, quando uma coleção tão rica de vírus teria sido útil para rastrear a origem do Sars-CoV-2. Permanece incerto se o instituto de Wuhan possuía um precursor do vírus pandêmico.

Em 2021, um projeto de pesquisa de 2018 chamado Defuse vazou. A proposta havia sido escrita como uma colaboração entre EcoHealth, o instituto de Wuhan e Ralph Baric na Universidade da Carolina do Norte. A proposta descrevia planos para criar vírus semelhantes ao Sars-CoV-2.

Os coronavírus recebem esse nome porque sua superfície é pontilhada com proteína S (espícula), como uma coroa pontiaguda, que usam para entrar nas células animais. O projeto Defuse propôs procurar e criar vírus semelhantes ao da Sars com proteína S com uma característica única: um local de clivagem de furina —a mesma característica que aumenta a capacidade de infecção do Sars-CoV-2 em humanos, tornando-o capaz de causar uma pandemia. O Defuse nunca foi financiado pelos Estados Unidos. Mas, em seu depoimento no dia 3, Fauci explicou que o instituto de Wuhan não precisaria depender de financiamento dos EUA para conduzir pesquisas de forma independente.

Embora seja possível que o local de clivagem de furina tenha evoluído naturalmente, entre as centenas de vírus semelhantes ao da Sars catalogados por cientistas, o Sars-CoV-2 é o único conhecido por possuir um local de clivagem de furina na espícula. E dados genéticos sugerem que o vírus havia adquirido o local de clivagem de furina antes de iniciar a pandemia.

No final, um vírus semelhante ao da Sars nunca antes visto, com um novo local de clivagem de furina introduzido, correspondendo à descrição na proposta Defuse do instituto de Wuhan, causou um surto em Wuhan menos de dois anos após a proposta ter sido elaborada.

Quando os cientistas de Wuhan publicaram seu artigo sobre a Covid-19, enquanto a pandemia ganhava vida em 2020, eles não mencionaram o local de clivagem de furina do vírus —uma característica a que deveriam estar atentos, de acordo com sua própria proposta de financiamento, e uma característica rapidamente reconhecida por outros cientistas.

Ainda pior, enquanto a pandemia se espalhava, seus colaboradores americanos falharam em revelar publicamente a existência da Defuse. O presidente da EcoHealth, Peter Daszak, admitiu recentemente ao Congresso que não tem conhecimento de amostras de vírus coletadas pelo instituto de Wuhan após 2015 e nunca perguntou aos cientistas do laboratório se haviam iniciado o trabalho descrito na Defuse. Em maio, citando falhas no monitoramento de experimentos arriscados conduzidos no laboratório de Wuhan, a administração Biden suspendeu todo o financiamento federal para a organização e para Daszak, e iniciou procedimentos para impedi-los de receber futuras bolsas. Em seu depoimento em 3 de junho, Fauci disse que apoiava essa decisão.

Separadamente, Baric descreveu a dinâmica competitiva entre seu grupo de pesquisa e o instituto quando disse ao Congresso que os cientistas de Wuhan provavelmente não teriam compartilhado com ele os mais interessantes vírus recém-descobertos. Documentos e correspondências por email entre o instituto e Baric ainda não estão disponíveis para acesso e sua divulgação é contestada.

No final, é muito provável que os parceiros americanos soubessem apenas de uma fração da pesquisa feita em Wuhan. Segundo fontes de inteligência dos EUA, parte da pesquisa de vírus do instituto era classificada ou conduzida com ou em nome do Exército chinês. Na audiência no Congresso, Fauci reconheceu a falta de visibilidade sobre os experimentos realizados no instituto de Wuhan.

3) O laboratório de Wuhan realizou esse tipo de trabalho em condições de biossegurança baixas que não poderiam conter um vírus tão infeccioso quanto o Sars-CoV-2

Em março de 2020, pacientes com Covid-19 aguardam em frente a hospital em Wuhan para serem transferidos - STR - 3.mar.20/AFP

Os laboratórios que trabalham com vírus vivos geralmente operam em 1 dos 4 níveis de biossegurança (conhecidos em ordem crescente de rigor como BSL-1, 2, 3 e 4) que descrevem as práticas de trabalho consideradas seguras, dependendo das características de cada patógeno. Os cientistas do instituto de Wuhan trabalharam com vírus semelhantes ao da Sars em condições de biossegurança inadequadamente baixas.

Em um experimento, o grupo de Shi modificou geneticamente um vírus semelhante ao da Sars inesperadamente letal (não relacionado ao Sars-CoV-2) que apresentou um aumento de 10 mil vezes na quantidade de vírus nos pulmões e cérebros de camundongos humanizados. Os cientistas do instituto de Wuhan manipularam esses vírus vivos em níveis de biossegurança baixos, incluindo BSL-2.

Mesmo a contenção muito mais rigorosa no BSL-3 não pode impedir totalmente o Sars-CoV-2 de escapar. Dois anos após o início da pandemia, o vírus infectou um cientista em um laboratório BSL-3 em Taiwan, que na época era um país com zero casos de Covid. O cientista havia sido vacinado e foi testado apenas após perder o olfato. Até então, mais de cem contatos próximos haviam sido expostos. O erro humano é uma fonte de exposição mesmo nos mais altos níveis de biossegurança, e os riscos são muito maiores para os cientistas que trabalham com patógenos infecciosos em níveis de biossegurança baixos.

Um rascunho da proposta Defuse afirmava que o laboratório de Wuhan realizaria seu trabalho com vírus no BSL-2 para torná-lo "altamente eficaz em termos de custo". Baric acrescentou uma observação ao rascunho destacando a importância de usar o BSL-3 para conter vírus semelhantes ao da Sars que poderiam infectar células humanas, escrevendo que "os pesquisadores dos EUA provavelmente ficarão chocados". Após anos depois, depois que o Sars-CoV-2 matou milhões, Baric escreveu para Daszak: "Não tenho dúvidas de que eles seguiram as regras determinadas pelo Estado e fizeram o trabalho sob o BSL-2. Sim, a China tem o direito de estabelecer sua própria política. Você pode acreditar que essa foi uma contenção apropriada se quiser, mas não espere que eu acredite. Além disso, não insulte minha inteligência tentando me alimentar com essa porcaria."

O Sars-CoV-2 é um vírus que se transmite pelo ar, causa uma variedade de sintomas semelhantes aos de outras doenças respiratórias e pode ser transmitido por pessoas infectadas antes mesmo de os sintomas aparecerem. Se o vírus tivesse escapado de um laboratório BSL-2 em 2019, o vazamento provavelmente teria passado despercebido até ser tarde demais.

Um detalhe alarmante — vazado para o jornal The Wall Street Journal e confirmado por fontes do governo americano— é que cientistas da equipe de Shi adoeceram com sintomas semelhantes aos da Covid em 2019. Um dos cientistas havia sido nomeado na proposta Defuse como a pessoa responsável pelo trabalho de descoberta de vírus. Os cientistas negaram terem ficado doentes.

4. A hipótese de que a Covid-19 veio de um animal no mercado de Huanan, em Wuhan, não é apoiada por evidências fortes

Guarda diante de mercado de Wuhan onde foi detectado o Sars-Cov-2 - Hector Retamal - 24.jan.20/AFP

Em dezembro de 2019, investigadores chineses presumiram que o surto havia começado em um mercado frequentado por milhares de visitantes diariamente. Esse viés na busca por casos iniciais significava que casos não relacionados ou localizados longe do mercado provavelmente teriam sido perdidos. Para piorar, as autoridades chinesas bloquearam a notificação de casos iniciais não relacionados ao mercado e, alegando precauções de biossegurança, ordenaram a destruição de amostras de pacientes em 3 de janeiro de 2020, tornando quase impossível ver o quadro completo dos primeiros casos de Covid-19. Informações sobre dezenas de casos iniciais, de novembro e dezembro de 2019, continuam inacessíveis.

Dois artigos publicados na Science em 2022 sugeriram que o Sars-CoV-2 teria surgido naturalmente a partir do contato humano-animal no mercado de Wuhan. Ambos se concentraram em um mapa dos casos iniciais e afirmaram que o vírus havia saltado dos animais para os humanos duas vezes no mercado em 2019. Mais recentemente, os dois trabalhos foram contestados por outros virologistas e cientistas que demonstram de forma convincente que as evidências disponíveis do mercado não distinguem entre um evento de supertransmissão humana e um transbordamento natural no mercado.

Além disso, os dados genéticos e de casos iniciais existentes mostram que todos os casos conhecidos de Covid-19 provavelmente derivam de uma única introdução do Sars-CoV-2 em pessoas, e o surto no mercado de Wuhan provavelmente aconteceu depois que o vírus já estava circulando em humanos.

Não houve a confirmação de nenhum animal infectado no mercado ou em sua cadeia de suprimentos. Sem boas evidências de que a pandemia começou no mercado de Huanan, o fato de o vírus ter surgido em Wuhan aponta diretamente para seu laboratório único de vírus semelhante ao da Sars.

5. Evidências-chave que seriam esperadas se o vírus tivesse surgido no comércio de animais selvagens ainda estão faltando

Homem coleta amostra para teste de Covid em wuhan, na China, em março de 2020 - Hector Retamal - 29.mar.20/AFP

Apesar da intensa busca concentrada no comércio de animais e pessoas ligadas ao mercado, os investigadores não relataram ter encontrado animais infectados com Sars-CoV-2 que não tenham sido infectados por humanos. Mas em surtos anteriores de Sars e Mers fontes de animais infectados e outras peças de evidência foram identificadas rapidamente, apesar do uso de tecnologias forenses virais menos avançadas de duas décadas atrás.

Mesmo que Wuhan seja a base dos caçadores de vírus com expertise no rastreamento de novos vírus semelhantes ao da Sars, os investigadores falharam em coletar ou relatar evidências-chave que seriam esperadas se a Covid-19 tivesse surgido no comércio de animais selvagens. Por exemplo, os investigadores não determinaram que aqueles com os primeiros casos conhecidos tiveram exposição a animais hospedeiros intermediários antes de adoecerem. Nenhuma evidência de anticorpos mostra que os comerciantes de animais em Wuhan estão regularmente expostos a vírus semelhantes ao da Sars, como seria de se esperar em tais situações.

Com a tecnologia de hoje, os cientistas podem detectar como os vírus respiratórios —incluindo os da Sars, da Mers e da gripe— circulam em animais enquanto tentam repetidamente pular entre espécies. Felizmente, essas variantes geralmente falham em se transmitir bem após passarem para uma nova espécie e tendem a desaparecer após um pequeno número de infecções. Em contraste, virologistas e outros cientistas concordam que o Sars-CoV-2 precisou de pouca ou nenhuma adaptação para se espalhar rapidamente em humanos e outros animais. O vírus parece ter tido sucesso em causar uma pandemia em sua única detecção em humanos.

A pandemia poderia ter sido causada por centenas de espécies de vírus, em dezenas de milhares de mercados de animais selvagens, em milhares de cidades e em qualquer ano. Mas foi um coronavírus semelhante ao da Sars, com um local de clivagem de furina único, que surgiu em Wuhan, menos de dois anos depois que cientistas, às vezes trabalhando em condições de biossegurança inadequadas, propuseram coletar e criar vírus com o mesmo design.

Embora vários cenários de transmissão natural permaneçam plausíveis, e ainda não saibamos o suficiente sobre a extensão total da pesquisa de vírus conduzida no instituto de Wuhan pela equipe de Shi e outros pesquisadores, um acidente de laboratório é a explicação mais razoável de como a pandemia começou.

Dado o que sabemos agora, os investigadores devem seguir suas pistas mais fortes e solicitar todas as trocas entre os cientistas de Wuhan e seus parceiros internacionais, incluindo propostas de pesquisa não publicadas, manuscritos, dados e pedidos comerciais. Em particular, as trocas de 2018 e 2019 —os dois anos críticos antes do surgimento da Covid-19— são muito provavelmente esclarecedoras, mas continuam distantes do público geral mais de quatro anos após o início da pandemia.

Independentemente de a pandemia ter começado em um banco de laboratório ou em uma barraca de mercado, é inegável que o financiamento federal dos EUA ajudou a construir uma coleção sem precedentes de vírus semelhantes ao da Sars no instituto de Wuhan, além de contribuir para pesquisas que os aprimoraram. Defensores e financiadores da pesquisa do instituto, incluindo Fauci, devem cooperar com a investigação para ajudar a identificar e fechar as brechas que permitiram a ocorrência de trabalhos tão perigosos. O mundo não deve continuar a suportar os riscos intoleráveis de pesquisa com potencial para causar pandemias.

Uma investigação bem-sucedida da causa raiz da pandemia teria o poder de quebrar um impasse científico de décadas sobre a segurança da pesquisa de patógenos, determinando como os governos gastarão bilhões de dólares para prevenir futuras pandemias. Uma investigação crível também dissuadiria futuros atos de negligência e engano, demonstrando que é de fato possível ser responsabilizado por causar uma pandemia viral. Por último, cidadãos de todas as nações precisam ver seus líderes —e especialmente, seus cientistas— liderando a busca para descobrir o que causou esse evento. Restaurar a confiança pública na ciência e na liderança governamental requer isso.

Uma investigação minuciosa pelo governo americano poderia desenterrar mais evidências, ao mesmo tempo em que estimularia quem tem informações sobre o tema a dizer o que sabe. Também mostraria ao mundo que os líderes e cientistas dos EUA não temem a verdade por trás da pandemia.

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