Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Álvaro Machado Dias

Problemas sobre cotas raciais são mais simples que parecem

Compreender raça como conceito parte social, parte biológico encaminha debate sobre bancas de heteroidentificação

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Metade da população brasileira é a favor de cotas raciais nas universidades públicas, de acordo com o que mostrou o Datafolha em 2020. A outra metade inclui quem é contra (34%), indiferente (3%) ou não sabe (12%). A avaliação positiva está ligada à percepção de que a lei mudou o perfil de ingressos e formandos, aproximando-os do resto da população brasileira.

Um diploma de medicina da USP, Unifesp ou Unicamp gera, para um aluno negro ou outro qualquer, uma perspectiva de renda futura de US$ 100 mil/ano, fazendo com que as portas dos colégios de elite se abram para os seus filhos, que poderão combater o racismo do topo da pirâmide socioeconômica, o que é essencial para que induzam efeitos sistêmicos e tornem as cotas raciais dispensáveis.

Retrato de estudante que ingressou na Unifesp por meio de cotas raciais - Zanone Fraissat - 24.ago.22/Folhapress

Na minha visão, o principal fator de endosso da tese de que as cotas raciais ainda são necessárias, a despeito das cotas sociais, é a expressiva assimetria nas chances de ascensão social de brancos e negros, igualmente pobres. Esta se relaciona à presença de vieses nos domínios da carreira e do empreendedorismo, os quais ajudam a entender por que a taxa de negros decresce conforme perscrutamos níveis mais altos das hierarquias corporativas e do serviço público.

Paralelamente, a pobreza negra é espacialmente mais concentrada que a branca, o que injeta dificuldades de ascensão parcialmente independentes da renda e da escola frequentada. Há também a conhecida super-representação de negros na população carcerária, fruto de diferenças de tratamento por parte das forças de segurança, julgadores e outros entes institucionalizados.

A base para a classificação de um candidato a aluno ou servidor público como potencial cotista é a autodeclaração. Se eu tivesse modelado esse fluxo, iria por aí, dado que é mais simples, barato e reduz a judicialização. Do mais, funciona bem na prática.

Conforme reportado pela BBC em 2020, "na UFRJ já foram 280 denúncias de possíveis fraudes nas cotas raciais desde a implantação do sistema [...]. A USP investiga 41 denúncias. A Unicamp desligou 9 alunos e a Unesp expulsou 30". Considerando que só a USP recebe mais de 10 mil alunos novos por ano, fica claro que a taxa de problemas é baixa. Superdimensioná-la é uma forma de distorção.

Feitas essas considerações, é evidente que o tratamento dos casos dúbios ou espúrios é um desafio de otimização decisória altamente relevante. A questão em jogo não é só a sorte de alguns candidatos, mas a maneira como organizações-chave do país solucionam problemas que, em face de sua natureza pública, são de interesse nacional.

É certo que as heurísticas utilizadas são todas igualmente irrelevantes para a grande maioria da população, mas isso não inibe a sensação de pertinência da questão, que é projetada nos píncaros da coisa pública. Assim, não seria correto dizer que esse é um debate fabricado por setores contrários às cotas raciais.

O que de fato se observa é a exploração dos flancos abertos por casos como o do candidato Alison Rodrigues (Faculdade de Medicina da USP) por aqueles que são críticos às cotas ou só às bancas de heteroidentificação, o que me parece natural, dado que o papel de muitos intelectuais é exatamente esse: criticar aquilo que lhes parece ruim ou insuficiente.

Como são construídas as críticas mais agudas? Elas utilizam os argumentos de militância antirracista para concluir que o método atual de tratamento de casos dúbios é em si racista.

Funciona deste modo: raça é um conceito social; sendo assim, ganha contornos na relação com o mundo. Essa não é existencialmente comunicável fora do círculo íntimo do sujeito em questão, nem é parametrizável, não havendo como uma banca de estranhos definir seu perfil racial, posto que, precisamente, esse se constrói em ato e não cabe em métricas.

O argumento possui uma ingenuidade de superfície que engana, e seu rechaço é menos trivial que parece. Sempre é possível dizer que o fato de que o conceito de raça ganha contornos contextualmente não significa que mude o tempo todo, de modo que podemos pensar em entendimentos comunicáveis.

As bancas não são compostas de "estranhos"; elas tendem a ser constituídas de especialistas em questões raciais, enquanto seu objetivo não é bem determinar o perfil racial do candidato, mas confirmar a autodeclaração, ou seja, a banca não age voluntariosamente, ela reage quando provocada.

Esses contra-argumentos rendem uma boa discussão, mas estão longes de encerrar o debate, o que dependeria da construção de uma linha de raciocínio internamente consistente e externamente consonante, com as seguintes proposições: (1) raça é um constructo social; (2) os formulários de autoidentificação são estruturados assim: eu, X, solicito minha inscrição como pessoa PPI (preta, parda ou indígena), tendo em vista que sou da raça-etnia Y; (3) as bancas avaliam se a informação que vai na última linha é verdadeira com base em entrevista.

O paradigma superável e a razão pela qual o debate é mais simples que parece

O grande problema nessa história é a máxima de que raça é um constructo social em todas as circunstâncias. Não me entenda mal. Essa perspectiva foi e continua sendo absolutamente fundamental para rechaçar o racismo, enquanto o histórico do posicionamento contrário, da biologização estrita, é o do eugenismo e do nazismo; é, enfim, o das ideias mais funestas que o pseudocientificismo já gerou. O que está em jogo é um conceito que é também uma posição.

Agora, pense comigo: é sabido que a esclerose múltipla é muito mais comum em brancos que pretos, enquanto para a diabetes de tipo 2 é o contrário. Ambas emergem de uma combinação de genes e ambiente.

Nessas circunstâncias, alguém diria que é problemático perfilar racialmente a coorte que participará de um ensaio clínico envolvendo uma nova intervenção comportamental? Muito pelo contrário. A questão prática que se coloca é que isso, muitas vezes, não é feito e os estudos acabam privilegiando as respostas clínicas dos brancos.

Note que o que está em jogo nesses exemplos reais é risco molecular, ao passo que a variável independente é raça, em geral, definida por meio de formulário de autopreenchimento.

ELSA-Brasil é o maior estudo longitudinal de saúde já feito neste país, com mais de 15 mil participantes. Em 2019, Paulo Lotufo (FMUSP) liderou um time que correlacionou ancestralidade genética e autodeclaração de raça para mais de 9 mil participantes. O que foi demonstrado é que, no Brasil, existe correlação entre raça declarada e ancestralidade. Sabe isso tudo o que se escreve por aí sobre a inexistência dessa correlação? Está factualmente errado.

Isso significa que raça é um conceito biológico, puro e simples? Não, de forma alguma. O que os dados revelam é que, do ponto de vista da relação entre autodeclaração e ancestralidade genômica, o conceito de raça é parcialmente social e parcialmente biológico (em oposição à ideia de que é exclusivamente social ou exclusivamente biológico).

Por exemplo, "a probabilidade de se autodeclarar preto cresce abruptamente quando a ancestralidade africana atinge 20% em Salvador e 10% em Porto Alegre" (Chor et al, 2019). Em Porto Alegre, cada 10% na proporção de ancestralidade africana aumenta a probabilidade de se declarar preto 14 vezes, enquanto em Salvador o incremento é de quatro vezes.

"Como esperado, sujeitos que se apresentam como brancos têm o mais alto nível de ancestralidade genômica europeia, enquanto aqueles que se classificam como pretos têm a menor. O inverso é verdadeiro para a ancestralidade africana. Ao mesmo tempo, os padrões distributivos variam marcadamente de região a região do país, refletindo as diferentes histórias de formação do país, ao longo de cinco séculos" (Chor et al, 2019).

Em 2015, havia saído outro estudo do tipo (publicado em uma revista do grupo Nature), apenas com moradores de Fortaleza e Salvador. Segundo os autores: "Existe correlação positiva entre raça declarada e proporção de ancestralidade africana, tanto para a população de Fortaleza, quanto para a de Salvador. Em Salvador, contudo, a correlação é mais forte do que em Fortaleza".

A mesma coisa vale para a América Latina inteira, Estados Unidos e para o resto do mundo. Seja qual for a região, a autodeclaração sempre será influenciada socialmente, tornando as associações locais estatisticamente mais significantes que as nacionais e continentais.

A correlação local entre ancestralidade e autodeclaração de raça significa que é legítimo deliberar sobre casos dúbios envolvendo cotas raciais, posto que estas são sempre locais, enquanto "a correlação significativa entre ancestralidade percebida e genética é consistente com os efeitos observados da ancestralidade genética na aparência" (Ruiz-Linares et al, 2014).

No entanto, para manter a coerência, é preciso adotar uma abordagem biossocial de raça, alinhada àquela que é usada em ensaios clínicos e outras iniciativas que, tal como a que está sendo discutida aqui, perfilam com objetivos inclusivos e não excludentes. Modelar a variável independente (raça) pela ótica biossocial traz vantagens que vão além do xeque-mate no debate intelectual.

A principal é que estimula o desenvolvimento de procedimentos seletivos menos sensíveis às variações de competência técnica dos membros das diferentes bancas julgadoras, por exemplo, pela inclusão no modelo decisório de análises de fotos da família (o que não ocorre hoje em dia), de modo a mitigar o peso das histórias contadas pelos candidatos, as quais podem introduzir variáveis de confusão, oriundas de diferenças de competência narrativa e carisma.

O cérebro é um superprocessador de padrões, com particular sensibilidade para os que envolvem a nossa própria espécie. Não é difícil treiná-lo para multiplicar sua precisão no reconhecimento das variáveis estatisticamente relacionadas ao aumento na probabilidade de se declarar PPI e, assim, às declarações de boa-fé, que são majoritárias, conforme indicado pelo baixo índice de casos espúrios.

Tampouco há qualquer coisa de errado em fazê-lo. Apenas é preciso ter em mente que isso é incompatível com a máxima de que raça é estritamente uma construção social. Neste contexto, é claro.

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