Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Metamodernidade está nos permitindo vencer o ceticismo

Novo período traz mensagens criativas ante o obscurantismo pós-moderno

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A identificação de uma tendência passa por dois grandes desafios: descrição de sua natureza e antecipação do momento em que deixa de ser passageira para se tornar hegemônica.
Quase todas as tendências que se fixam seguem um movimento característico. Após um período de propagação nichada, adquirem vigor entre pessoas que se destacam pela combinação de influência e disposição para traduzir novas ideias para o grande público ou, simplesmente, separar o joio do trigo em termos de produtos e outros artefatos cultuais.

Em seguida, vem uma fase de fixação mais ampla, quase sempre desconectada da prática e da reflexão crítica. Caso tenha potencial para suprir demandas existenciais ou práticas e seja depositado esforço sistemático no seu aprimoramento e disseminação, a tendência sobreviverá ao efeito devastador dos meses e anos, tornando-se relevante. Isso é o que, em essência, modelos de inovação, como proposto pelos cientistas da Gartner descrevem.

"Natureza-Morta: O Dia" (1929), tela do pintor cubista Georges Braque presente na National Gallery of Art, em Washington, nos Estados Unidos. (Foto: Divulgação) - Divulgação

Na minha opinião, trata-se de um modelo insatisfatório para se entender a sucessão das ideias e de suas materializações. O que de fato vai determinar se uma tendência qualquer irá se tornar parte do nosso arcabouço cultural, ao invés de ir parar no inventário das promessas que não vingaram, são as sinapses que estabelece com as outras transformações relevantes do período. Essas sinapses, por vezes, geram um cérebro, um ente funcionalmente independente de cada uma das noções recém-fixadas, o qual passa a determinar o que é aceitável e inaceitável, o que a maioria deseja ser e ter e o que rechaça, o que é de bom gosto e de mau gosto; enfim, o que é viver a mentalidade daquele período. Assim é delimitado um novo espírito do tempo.

As coisas não se tornam grandiosas apenas por sobreviverem ao escrutínio popular em certo momento; elas o fazem ao se tornarem forças motrizes do espírito de um tempo, ditando expectativas e, ao mesmo tempo, tendo sua incorporação facilitada lateralmente por outras ideias. Da mesma forma, quando um conjunto de expectativas é fixado no espírito de um tempo e as coisas não avançam como esperado, este se torna frágil e declina, o que faz com que as tendências ditas quentes rapidamente esfriem, abrindo espaço para que alternativas distintas em sua natureza sejam priorizadas e, por vezes, extrapoladas, originado um novo sinal dos tempos.

Portanto, existe uma relação profunda entre as ideias mais importantes em determinado momento e o espírito do tempo que dá o tom mais amplo para a cultura: aquelas somam-se na criação deste, que se torna independente e passa a determinar a própria sorte das ideias e suas aplicações.
Por exemplo, existe uma rede conectiva relacionando a descoberta do inconsciente pela psicanálise, que redefiniu a saúde mental, a teoria da relatividade e a mecânica quântica, que redefiniram a física, bem como nosso entendimento do que é a realidade de maneira mais ampla.
Contextualmente, essas ideias tornaram-se célebres em uma única geração (1910-1930), a qual foi palco da Primeira Guerra Mundial, que levou ao declínio definitivo dos grandes impérios, a primeira pandemia da modernidade, o surgimento do avião, a penicilina, as rádios e alguns dos principais movimentos artísticos tipicamente modernos. Mas não é só.

Uma das grandes marcas da modernidade, que ganha contornos por meio desses feitos e aos poucos se torna independente é a crença em princípios unificantes (avião e rádio foram rapidamente identificados como conectores globais), e teorias definitivas de tudo – abordagens de grandes temas que propõem universais ou, ao menos fundamentais, como a teoria da relatividade para a física e o Tractatus Logico-Philosophicus (Wittgenstein, 1922) para a filosofia. Da revolução bolchevique ao projeto de industrialização global pré-1929, a humanidade parecia talhada para um destino grandioso.
Poucas décadas à frente, a ciência da computação é inventada por gente como Alan Turing e John von Neumann que, junto com Morgestern, formalizou os axiomas da racionalidade em um livro muito importante, coincidentemente lançado com a invasão da Normandia (1944), cujo sucesso selou o desfecho da II Grande Guerra.

O balanço sobre o projeto de poder racista e pseudocientífico de Hitler e a identificação da prevalência da aparência de racionalidade nos programas totalitários de todos os matizes abateu a crença nas grandes narrativas e, como uma poderosa sinapse excitatória, fortaleceu a produção de conhecimento dedicada a desvelar o sujeito oculto na produção de verdades sobre a natureza humana. A noção de especificidade ganhou força, bem como a de que existem alternativas dignas ao nosso modelo de subjetivação e solução de problemas.

Não é por acaso que a teoria decisória baseada nos axiomas da racionalidade mencionados acima perdeu espaço para as demonstrações de que as pessoas decidem diferentemente em função do contexto, a partir da metade da década de 1950, com Maurice Allais e outros. Era o surgimento do campo das heurísticas e vieses, cujo nome caracteriza como poucos o que veio a seguir.

A pós-modernidade

A emergência de uma tendência e a transição para um novo espírito do tempo seguem etapas análogas, mas diferem quanto à velocidade de desenvolvimento e visibilidade. A relação sinal/ruído é menos clara nestas grandes transformações, o que explica porque poucos são aqueles que de fato conseguem descrever este tipo de coisa em seus primórdios. A crise das grandes narrativas e, com ela, do projeto de elevação inconteste da humanidade por meio da razão e de seus simulacros, começa a ser sentida na década de 1940, mas foi apenas na década de 1970 que ganhou contornos mais claros e um nome: pós-modernismo.

A ideia de pós coloca-se em direta oposição àquilo que deixa para trás, que é a modernidade tardia, entendida como período de extrema ambição e arrogância. Isso é central para se entender o espírito deste tempo, que ainda se mantém: sua principal agenda é a da crítica dos megaprojetos e aspirações intelectuais universalizantes, que caracterizaram as décadas anteriores e, na visão dos intelectuais pós-modernistas mais radicais, toda a produção intelectual ocidental.

Um dos principais neurotransmissores nas diferentes sinapses do pós-modernismo é o rechaço. Rechaço à ideia de fundação e de essência, à de certeza e de Verdade. Já o seu recurso estilístico primário é a ironia, cuja presença no colunismo e outras manifestações intelectuais atuais ecoa o enraizamento dessa preferência pelo desprezo sobre a descrição informada e a afirmação do valor do que quer seja. Sua palavra-chave é discurso e sua iconografia rizomática. Quando lhe questionam a originalidade, questiona o questionamento e apresenta a reprodução como defesa.

A postura pós-modernista torna-se pop em obras como as de Andy Warhol e Roy Lichtenstein, que simultaneamente celebravam e criticavam o mercado e a produção em massa. E na sala de concertos Walt Disney (Frank Gehry, 2003), cujas formas brincam com os sentidos e se colocam em direta oposição à ideia de que a arquitetura deveria seguir preceitos universalistas e utilizá-los para resolver os problemas do mundo, como coloca diz Samantha Pires (Metropolitan, 2021).

Porém, foi do outro lado do Atlântico que o pós-modernismo atingiu o paroxismo, sobretudo pelos intelectuais franceses das décadas de 1960-1980. Um expoente foi Jean-Francois Lyotard, que se inspirou no conceito de jogos de linguagem da segunda fase da obra de Ludwig Wittgenstein para afirmar a primazia das construções verbais sobre qualquer outro aspecto da realidade: "não estou dizendo que a totalidade das relações sociais é desta natureza – isso permanece uma questão em aberto – mas, não é necessário apelar para qualquer tipo de ficção sobre origens sociais para se dizer que os jogos são as relações mínimas necessárias para a sociedade existir" (Lyotard, J-F, 1979, p. 11).

Na visão do autor, todos as formas de apropriação da realidade e geração de conhecimento têm o mesmo valor, com exceção das metanarrativas modernas, que ele condena. Divergências de entendimento são tomadas como consequências dos limites na tradução e intercâmbio de referenciais, não devendo ser resolvidas em sínteses ou hegemonias.

A ideia de que visões alternativas sobre a natureza da realidade e outros temas devem ser postas à prova para que a sociedade possa incorporar as que forem mais alinhadas às evidências e mais pródigas na geração de consequências válidas é rechaçada, sob o princípio de que os ‘jogos de linguagem’ usados para tanto estão comprometidos em sua origem com o projeto racionalista, fonte do empirismo e do foco primário nas consequências.

Lyotard e outros intelectuais do período preferem o dissenso ao consenso exatamente porque este último está associado à hegemonia do racionalismo, que se manifesta como mecanismo de poder, não apenas na vida adulta, mas durante a infância e adolescência por meio da educação. "O trabalho do educador crítico na pós-modernidade é construir um currículo emancipatório, que legitime a condição pós-moderna frente à cultura de massa para ajudar os alunos a criticar e transcender suas formas mais incapacitantes" (McLaren e Hammer, 1989, p. 55).

Uma frente que avançou facilitada pelos feixes de conectivos no cérebro pós-modernista foi a dos estudos e movimentos sociais pós-coloniais. A abordagem da história de pontos de vista alternativos ao tradicional, eurocêntrico é tomada por muitos como sinônimo de pós-modernidade. "O pós-colonialismo é um filho do pós-modernismo (...) o grande projeto pós-modernista é a desconstrução das metanarrativas centralizadas, logocêntricas da cultura ocidental (...) o pós-colonialismo consiste numa tentativa de dissolver o binarismo entre centro e margem do discurso imperialista" (Salhi, 2020).

O ceticismo em relação às grandes verdades; o exercício deliberado de colocar em pé de igualdade intelectuais ‘ocidentais’ e ‘periféricos’; o desmantelo das narrativas eugenistas construídas em cima dos relatos de viagens de europeus dos séculos XVII-XIX sobre quem são essas pessoas dos trópicos, entre outros movimentos de elevação das periferias do planeta fez bem à humanidade. Seguramente, a vida de mulheres, pretos e pardos, indígenas e pessoas LGBTQIA+ se tornou melhor por causa do cérebro pós-modernista.

Porém, essa não é toda a história. A arte que intencionalmente rejeita a interioridade e tem no consumismo um dos seus maiores interesses se converteu em uma indústria estéril, umbilicalmente ligada aos interesses de galeristas e outros empresários. Dois marcos disso são a escultura "A Impossibilidade Física da Morte na Mente de Alguém Vivo", de Damien Hirst (1991), um tubarão em formol, que ele comprou por 50 mil libras e vendeu por 8 milhões de dólares e o Bored Ape Yacht Club: #8817, uma figurinha digital junto a um certificado de propriedade armazenado em blockchain, que foi vendida por 3.4 milhões de dólares (2021).

A filosofia pós-moderna tornou-se, ela própria, uma forma de garantir a hegemonia intelectual de um pequeno grupo de intelectuais, na Europa e na América Latina. Alheio ao escrutínio das ideias sobre o mundo a partir dos sinais que ele emite, o pós-modernismo levou ao culto de autores que escrevem de maneira propositalmente obscura e que, por vezes, propõem coisas francamente ridículas, e.g., que uma pessoa não poderia ter tido a doença X no século Y pois ela não existia, já que não havia sido descrita. Noam Chomsky menciona um caso assim envolvendo a tuberculose, essa construção social do pulmão, mas há muitos outros exemplos por aí.

A rejeição da ‘dominação logocêntrica’ não tardou para se tornar desconfiança da ciência, afinal, seu papel na pós-modernidade é servir ao poderosos. Isso ajuda a entender por que foi tão fácil convencer os incautos de que as vacinas poderiam ser vetores de controle durante a pandemia.
A ideia de rechaço como mecanismo genuíno de aglutinação ideológica foi utilizada por Bolsonaro e seus marketeiros consanguíneos. Nenhum projeto político, nenhum debate, nenhuma ideia sobre o day after; ao invés disso, grupos cuidadosamente segmentados no WhatsApp, de acordo com aquilo que rechaçam, como ensinou Steve Bannon. Isso seria impossível se as pessoas urgissem por algo além da pura negação.

A desconstrução da verdade dos poderosos, por meio da relativização dos discursos de autoridade e equiparação das fontes discursivas - uma prática que emana das palavras de Jean-Francois Lyotard – é uma das principais sinapses alimentando a tendência a se atribuir valor equivalente àquilo que está escrito em um post do Instagram e no editorial de um grande jornal.

Sem contar o fim da arte (McEvilley, T., 2006), das ideologias (Bell, D., 2000), da história (Fukuyama, F., 1989) e mais e mais e mais, até a exaustão.

Pois o que venho observando – e outros também – é que há um cansaço generalizado com tudo isso: a ironia como forma primária de estimulação intelectual, as teorias pensadas para serem obscuras, a ideia de que homeopatia e cirurgia são discursos paralelos no tratamento do câncer, a arquitetura em que forma e função estão descasadas, assim como a arte feita por quem não consegue desenhar um cubo. Acima de tudo, o rechaço como fim em si mesmo desgastou-se e já não leva mais à produção de ideias verdadeiramente novas e excitantes.

Neste momento, está em curso uma transição a um novo espírito do tempo. Isso é diferente de dizer que estamos retornando aos valores modernos ou, na linha dos nossos talibãs e vaqueiros incendiários, pré-modernos. Pelo contrário, uma marca desta nova fase é a incorporação das lições da pós-modernidade que ensejam caminhos positivos: o respeito às mulheres e às minorias, a valorização das experiências de quem não está em Cambridge ou na Sorbonne, a compreensão do consumismo como faceta inalienável, mas ainda assim reducionista da vida de todos nós, entre outras. O novo cérebro faz do rechaço pós-moderno uma de suas sinapses.

Porém, a produção artística vem se orientando mais à geração de mensagens sinceras, ao invés de apenas celebrar o ceticismo, a produção intelectual abertamente orientada a pensar o futuro cresce com vigor sem precedentes, com baixa tolerância ao obscurantismo e alta abertura à criatividade. E, acima de tudo, a iminência da catástrofe climática se tornou parte da agenda global, vencendo o ceticismo, que até há pouco era a força dominante.

Esses são alguns dos fatores que indicam que estamos entrando na Era da Metamodernidade.

A metamodernidade é o espírito de um tempo que emana ‘idealismo pragmático’, como bem colocaram Timotheus Vermeulen e Robin van den Akker, pioneiros na sua identificação.

Não perca os próximos artigos da coluna, nos quais vou descrever como a metamodernidade, conceito introduzido no Brasil por meio deste artigo, vem se apresentando e como deverá impactar algumas das principais dimensões das nossas vidas nos próximos anos. Até lá.

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