Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Descrição de chapéu tecnologia

Assistentes virtuais podem ajudar estudantes com dificuldade de aprendizado

Há riscos, porém, de investimento em IA levar a cortes orçamentários e aumento do número de alunos por professor

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A principal promessa da inteligência artificial no ensino fundamental e médio é oferecer suporte personalizado aos estudantes, permitindo que alcancem resultados acadêmicos que seriam possíveis apenas com tutoria intensiva e individualizada. Apoio ao professor, como o que será implementado em São Paulo, é algo menos relevante, ainda que não livre de riscos.

O verdadeiro Santo Graal da educação é a perspectiva de ampliar a capacidade dos estudantes de aprender. Em 1984, Benjamin Bloom discutiu essa questão em um trabalho sobre o "problema dos dois sigmas", ou seja, dos dois desvios padrão, estabelecendo um divisor de águas no debate.

Estudantes desenvolvem projeto de matemática em Berkeley, nos EUA - Ian C. Bates - 14.jun.23/The New York Times

Bloom conduziu uma série de experimentos para identificar os fatores que mais influenciam o rendimento acadêmico. No mais célebre deles, estudantes foram alocados aleatoriamente em três ambientes distintos.

Escola tradicional: turmas de 30 alunos por professor, com métodos generalizados.

Modelo tradicional de qualidade: semelhante ao tradicional, mas com incrementos pontuais de tempo e atenção.

Tutoria individual: contrapondo-se à instrução em massa, cada aluno recebia atenção individual, com conteúdos seguidos por avaliações, feedback personalizado e ações corretivas focadas.

Por analogia, a primeira condição corresponde às escolas públicas e privadas operando em larga escala, a segunda, às instituições de qualidade superior e a terceira, a estabelecimentos excepcionais como o Instituto Le Rosey na Suíça ou a mítica Academia de Platão.

O que Bloom mostrou e pesquisadores independentes corroboraram é que o nível de massificação é responsável por variações imensas no aprendizado. "O mais impressionante foram as diferenças no desempenho final nas três condições. Usando o desvio-padrão (sigma) do nosso controle foi demonstrado que o aluno médio da tutoria personalizada está dois desvios acima do que passa pelo ensino tradicional. O aluno médio daquele grupo posiciona-se acima de 98% dos alunos da escola tradicional".

"Já o aluno médio do ensino de qualidade superior está cerca de um desvio-padrão acima dos controles da escola tradicional. Isto significa que esse aluno está acima de 84% dos alunos do modelo controle de sala de aula" (Bloom, 1984, p. 4, adaptado para fins de clareza).

Vamos interpretar o impacto desses dois sigmas de diferença na prática. O estudante que não consegue acompanhar conteúdo algum, ao se tornar o foco do ensino, progride para uma performance de quem passa de ano de raspão (de E para C). Aquele com rendimento um pouco superior, frequentemente à beira de ser diagnosticado, seja correta ou indevidamente, com transtornos como déficit de atenção ou falha de processamento auditivo central, ascende para um nível bom (de D para B).

O aluno acostumado a passar de ano de raspão evolui para o topo da classe (de C para A). O bom alcança distinções (de B para A+), enquanto o excelente pode acumular prêmios em competições acadêmicas, mesmo não tendo nascido um gênio.

Várias conclusões emergem dessa linha de estudos. Primeiramente, a proporção de alunos por sala se mostra um fator crítico para a qualidade educacional. Contrariando interesses de gestores educacionais, é evidente que a escolha de uma instituição privada deve levar em conta a quantidade de estudantes atendidos simultaneamente por cada professor. Interessante notar que as pesquisas de Bloom nem mesmo consideraram turmas com mais de 30 alunos.

Depois, a oferta de interações diretas entre educador e aluno é crucial. Monitorias individualizadas e outras dinâmicas um a um são decisivas na distinção entre escolas de excelência e as demais. Mensalidades nem sempre caminham junto; afinal, custo imobiliário, infraestrutura, salários e modelo de negócios também contam demais. Presumir que "mais caro" é equivalente a "melhor" é um equívoco diante da complexidade do mercado educacional.

Por fim, é do interesse das famílias e, sobretudo, dos estudantes, que as metodologias de ensino se aproximem do modelo personalizado, do ponto de vista da aquisição de esquemas cognitivos. É com esse critério que devemos avaliar o potencial de contribuição da IA para a educação.

Avaliação prospectiva dos assistentes na educação

Tutores virtuais impulsionados por IA podem ter natureza impessoal ou contar com elementos que emulam a interação com educadores humanos. A possibilidade de comunicação vocal, uma estilística expressiva, traços de personalidade e até avatares animados com trejeitos e preferências contribuem para essa simulação.

A gameficação que se aprofunda pela inclusão de cada um desses recursos aumenta o engajamento médio, o que é ótimo. Por outro lado, eleva os riscos de a IA inventar coisas (alucinações), de afetar negativamente a disposição para as interações na sala de aula e de criar dependência nos alunos mais vulneráveis.

Conforme o "Platão de bolso" ganha vida, o aluno corre mais risco de se tornar patologicamente subordinado à tecnologia, estendendo o que se observa entre os que não se sentem confortáveis para ir até a padaria do bairro sem o Waze.

Outra questão fundamental é o quanto a ferramenta pode ser manipulada pelos alunos menos aplicados para que possam se esforçar ainda menos, sem verem suas notas declinarem.

Esse fenômeno já se observa no ensino superior, em que o uso do ChatGPT tem levado a uma queda na qualidade educacional, com estudantes utilizando-o para contornar desafios em vez de superá-los. Isso sublinha a necessidade de explorar assistentes virtuais mais adaptados à missão educacional. Proibir tais ferramentas não é viável, como a realidade já vem mostrando, além de ser ideologicamente questionável.

Salman Khan contemplou tais fatores ao desenvolver o seu assistente educacional, o Khanmingo (Khan Academy). Este oferece rotas de aprendizado em vez de respostas prontas, faz pouco uso de projeções humanizantes e só pode ser utilizado por maiores de 18 anos, que assinem a Khan Academy e morem nos EUA, que é, para ele, o ambiente mais controlável.

No estágio atual, em que as alucinações são incontroláveis e os primeiros estudos sobre dependência tecnológica criada por assistentes ainda estão em andamento, é a postura certa. Isso não significa que garanta, per se, a qualidade da tutoria, que é outro ponto nevrálgico. Uma investigação conduzida pelo The Wall Street Journal revelou que o Kahnmingo oferece caminhos resolutivos errados em questões de geometria, onde também toma respostas incorretas como certas.

Esses erros não têm a mesma natureza das alucinações mais conhecidas, as quais são verbais. A tendência à invencionice é decorrência da própria arquitetura do ChatGPT, que está por trás do Kahnmingo, não sendo plenamente corrigível sem outro projeto de IA.

Já as falhas em matemática escolar tendem a se reduzir muito com novos treinamentos e a adição de lógicas típicas das IAs de jogos e algoritmos de busca, o que, neste momento, vem sendo perseguido por Google, OpenAI, Meta, Anthropic e todo o mundo mais. O salto é iminente, o que torna o rechaço definitivo do recurso prematuro.

O risco que mais me preocupa não emerge diretamente da tecnologia, mas do potencial de mau uso institucional que traz consigo. As big techs estão investindo tudo em IAs generativas sob o pretexto de enriquecer o trabalho humano, enquanto substituem pessoas por máquinas.

Aplicado à educação, o princípio pode significar cortes orçamentários e aumento no número de alunos por professor, na contramão do avanço pedagógico que precisa acontecer. Ainda estou para ver uma decisão do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), entre outros, que me leve a pensar que não seria esse o caso, mas essa é uma questão independente, que não deve ser confundida com a que estamos tratando.

Considerando a intenção genuína de melhorar a educação, é essencial reconhecer que um modelo concebido para um sistema de ensino suplementar privado nos EUA (Khan Academy) não se alinha diretamente com os desafios educacionais do Brasil, onde questões de renda e acesso à tecnologia são prementes. Oferecer assistente personalizado sem um computador é repetir o erro que marcou o ensino remoto durante a pandemia.

Portanto, se há uma política pública fundamental a ser colocada em prática é a disponibilização dessas máquinas para a baixa renda. Apenas o seu sucesso permite que usemos softwares de apoio cognitivo em larga escala.

Minha visão é que os alunos de escolas particulares de nível médio dotadas de projetos pedagógicos inovadores são os mais propensos a se beneficiar das novas IAs neste momento. Esses alunos possuem os meios tecnológicos e, com orientação adequada, podem fechar a lacuna de conhecimento em relação a seus pares das escolas mais bem-ranqueadas do Brasil e do mundo, o que tende a se mostrar importante no futuro, já que todas as projeções indicam aumento da competitividade por empregos em função dessas tecnologias.

Acredito que a janela de oportunidades para a diferenciação seja curta. Em poucos anos, o recurso deve se tornar universal, refletindo o fato de que ajudar os alunos com dificuldades a saírem do atoleiro justifica os desafios que inaugura e os que potencializa.

Com isso, o debate deve se concentrar nas ameaças de dependência emocional, vício em telas e algoritmização do pensamento, que é o nome pelo qual atende o dogmatismo da era digital. Não será fácil, mas, considerando que a última edição do Pisa mostra que "o Brasil está entre os últimos do mundo em matemática, ciência e literatura", até que são problemas aceitáveis de se ter.

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