Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Álvaro Machado Dias
Descrição de chapéu tecnologia

Como tecnologia determina o que pensamos e fazemos

Blockchain, cuja reputação foi arruinada por golpes sucessivos, tem potencial de incentivar empreendedorismo

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Ninguém gosta da ideia de que faz de bom grado e pensa aquilo que pessoas com as quais não mantêm qualquer relação conceberam, mas quando até Jonathan Haidt, o cientista que promove a cruzada moral do momento contra as redes, elege o YouTube como campo de batalha, a gente nota que é o caso de dizer que encenamos roteiros alheios.

A contradição possui um histórico conhecido. O sujeito genuinamente acredita que Cuba é um exemplo para o mundo, mas sonha mesmo em morar em Nova York e lecionar em Columbia.

Adolescente usa telefone celular em Nova York

Os aficionados por batalhas ideológicas são rápidos em apontar: hipocrisia! Não é tão simples. Ocorre que, independentemente de suas crenças sobre modelos político-econômicos e estruturas de subjetivação, Columbia continuará propiciando uma experiência intelectual mais rica que a que se tem na USP, que por sua vez é superior à das escolas particulares, até para quem considera que o melhor para o Estado é a sua privatização.

Com a tecnologia é a mesma coisa: ela torna visões de mundo e rotinas comportamentais irresistíveis, mesmo para a maioria dos que acreditam rechaçá-la. Em alguns casos, isso se traduz em pura elevação da experiência, em outros, no contrário, ao passo que a maioria dos casos fica no meio do caminho, ainda que puxando mais para o lado positivo do que para o negativo. Isso pode ser deduzido do fato de que todos os indicadores de qualidade de vida sobem com o tempo, junto com algumas doenças psiquiátricas e neurológicas.

A gente sabe que usar o Waze até para ir à padaria eleva as chances de demência. Mas, quantos topam sair de carro sem ele? Mais fácil é bradar contra a algoritmização do pensamento que promove e seguir em frente, até porque o Waze melhor a nossa vida em termos mais amplos.

No artigo anterior, apresentei uma definição do que é tecnologia para as pessoas em geral e alinhavei suas propriedades fundamentais. Tecnologia é o somatório das coisas orientadas à prática, que nos são contemporâneas e que a gente não tem a menor ideia de como funcionam.

No entanto, a tecnologia possui outra realidade, oculta para aqueles que estão distantes de suas dinâmicas criativas e produtivas. Tecnologias são prescrições comportamentais materializadas, frequentemente em grande escala.

As rotinas comportamentais e entendimentos que induz não são externalidades, mas partes de uma unidade indivisível que podemos chamar de tecnocomportamental, a qual define o que a tecnologia efetivamente representa no mundo atual. Essa é a mensagem central até aqui.

A canalização tecnocomportamental ocorre em diferentes níveis. No nível mais concreto, a estrutura de nossas mãos começa a mudar devido à digitação constante. No mais abstrato, comportamentos espontâneos se alinham de tal forma que até os maiores críticos de uma tecnologia acabam por adotá-la. É nesse nível que se manifestam os maiores impactos societários.

Não existem conceitos estabelecidos para descrever essa canalização. A noção mais próxima é a de modelo de negócios, que sugere que a venda de algo é necessária para explorar a modelagem comportamental como parte da tecnologia. Isso é duplamente falso: primeiro, porque o princípio é adotado por governos e outras instituições; segundo, porque quem tem uma grande ideia tecnológica geralmente foca os recursos que tornam os comportamentos desejados irresistíveis, chutando para frente a questão da monetização.

Hoje, entramos despreocupadamente no carro de estranhos e até ficamos em suas casas. Nossa relação com desconhecidos mudou. A origem disso é o botão de curtir e as estrelas, que nos dá o poder de afetar a reputação dos outros em um contexto no qual essa serve de baliza.

A tecnologia parece se resumir ao botão ou, mais especificamente, ao software para celulares que permite avaliações agregadas em escores, quando na verdade é um novo sistema de coordenação reputacional em escala, que funcionou por focar um comportamento-alvo que a maioria oferece voluntariamente, o feedback sincero. Em um mundo no qual os smartphones se espalham, tal sacada torna-se suficiente para resolver o problema da confiança transacional entre estranhos, o qual permeia a história das relações baseadas em contratos frágeis.

O resultado é tão atraente que até quem considera a economia compartilhada o auge da manipulação faz questão de dar uma estrela no aplicativo se for mal atendido. Nessa hora, não importa que ele esteja, como diz, trabalhando de graça para a plataforma "tecnofeudal".

Entre os criadores da economia compartilhada estão uns moleques que originalmente queriam alugar um cômodo no apartamento que compartilhavam. Mas, quem toparia? Havia um claro problema de confiança na oferta. Generalizando para todos os outros estudantes duros existentes, compreenderam que o problema era grande e que a solução passava pela criação de uma camada de confiança na própria tecnologia, em associação íntima com o comportamento-alvo (o feedback sincero), que se tornava parte essencial do sistema.

Nessa mesma época, final da primeira década dos anos 2000, surgia outro paradigma tecnocomportamental de natureza social: as compras coletivas. Para o indivíduo superficialmente informado, a novidade consistia em um feixe de tecnologias de intermediação: um sistema de distribuição otimizada de ofertas digitais (SEO), um sistema de controle de consumo e um sistema de pagamentos distribuídos em cadeia (split de pagamentos).

Em um nível mais profundo, captar clientes por meio das compras coletivas exige baixar o preço abaixo do custo, o que gera um dilema, já que os estabelecimentos participam porque precisam ganhar mais dinheiro. A clínica de estética de bairro que realisticamente oferece 500 massagens modeladoras a R$ 20 cada quebra por incapacidade de pagar os profissionais necessários para atender a clientela e poder capitalizar em cima das experiências positivas nos meses seguintes.

É exatamente nesse ponto que o comportamento-alvo dessa tecnologia entra em cena. A tese das compras coletivas é que há uma profunda assimetria entre os incentivos para comprar e consumir, causada pelo fato de que a digitalização está inteiramente concentrada na primeira etapa.

Os números corroboram essa tese. No auge das compras coletivas, cerca de 40% das vendas resultavam em não comparecimento, o que aumentava as margens em 40%. Parece ótimo, mas na verdade explica o fracasso: quando dá "no-show", o cliente perde o entusiasmo pelo formato e deixa de contribuir para a expansão da marca. Com o tempo, o custo de captação aumenta, enquanto o estabelecimento percebe, mais e mais, que o esforço não vale a pena.

O que isso mostra é que a capacidade de um modelo tecnocomportamental alterar a cultura depende da magnitude e duração de sua atratividade para aqueles que veem falhas no status quo. Isso não significa que devemos acreditar naquelas coisas que se dizem em TED Talks sobre mudar o mundo fazendo bilhões. Claro que não. Mas de fato sinaliza que a cadeia de incentivos não pode ser perversa a ponto de impedir a recorrência.

Junto com a economia compartilhada e as compras coletivas, surgiu uma terceira tecnologia de natureza social: o blockchain. Do ponto de vista mais superficial, a tecnologia "garante a validade de registros, sem a necessidade de que exista confiança entre todos os agentes envolvidos na operação". O paralelismo com a lógica de "likes" e estrelas é evidente, embora o foco principal seja mais financeiro: uma vez que existe uma tecnologia de validação transacional, em face da qual os usuários podem chancelar transferências de valores, o Banco Central torna-se ocasionalmente dispensável.

Na prática, a criação de moedas privadas intensificou a falha fundamental das compras coletivas: oferecer algo que sabidamente não pode ser entregue ao consumidor. Golpes sucessivos destruíram a reputação do blockchain.

Para piorar, moedas digitais de rastreamento complexo levaram ao surgimento de uma nova classe de piratas, bem diferentes dos camelôs da praça da República. São hackers que pulam de quadrilha em quadrilha como quem troca de embarcação. Eles lideram sequestros de sistemas corporativos e podem se dar ao luxo de oferecer milhões de dólares para quem conseguir produzir alguma pista capaz de levá-los à prisão. Se você acha que os chefões tradicionais do crime são os grandes espertos do mercado, pense novamente.

Em meio a tudo isso, uma dinâmica tecnocomportamental foi sendo deixada de lado: a partilha de bens entre consumidores por meio da tokenização. A ideia é a seguinte: em vez do token (moeda) representar uma abstração que ganha valor pelo uso, como ocorre com o bitcoin, ele representa uma fração de um bem. Com isso, a esfera do status quo tensionada passa de fiduciária para a da emissão de ações (mercado de capitais), que é cara, demorada e só viável para grandes ativos.

Bancos e outras instituições financeiras vêm fazendo isso em países que permitem a emissão desse tipo de título ("security tokens"). Mas essa não é a mudança cultural de maior potencial. O que me chama atenção é a possibilidade de democratizar a participação societária e de vincular essa participação ao consumo.

Imagine que você tenha uma padaria de bairro e precise reformá-la. Em vez de pegar um empréstimo ou tentar vender cotas de participação para um fundo, o que tende a ser impossível para empresas com esse perfil, você emitiria tokens de uma parte do capital social do negócio (por exemplo, 10%), que poderiam ser disponibilizados no próprio ponto de venda.

É fácil pensar em estratégias para canalizar valor do relacionamento prévio com o consumidor. Por exemplo, o cliente habitual poderia converter seus tokens em consumo com 20% de bônus após alguns meses ou converter sua participação nos dividendos em produtos com a mesma vantagem, dando sentido prático à "participação societária vinculada ao consumo".

Hoje, isso pode parecer estranho, especialmente no Brasil, onde empreender tende a ser malvisto. No entanto, vale notar que tal modelo tecnocomportamental pode reduzir um pouco a distância entre compradores e vendedores, incentivando negócios locais e o empreendedorismo, o que deverá se tornar mais importante, à medida que a inteligência artificial efetivamente avance sobre o emprego.

Por essa razão, acredito que o blockchain tem grandes chances de ter um novo momento, distante de seu histórico de abusos e excessos, e finalmente mudar a maneira como agimos e pensamos, possivelmente para melhor.

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