O que faz com que uma deputada federal — mulher branca, reeleita pela base do governo — se sinta no direito de sair rua afora empunhando uma arma numa tarde de sábado, acompanhada de um bando de gente e de segurança dando tiro para o alto, em perseguição a um homem negro desarmado que a teria importunado verbalmente?
De pronto consigo pensar em algumas hipóteses e todas elas passam pelo chamado privilégio branco.
Fato é que a lei eleitoral proíbe o transporte de armas e munições por colecionadores, atiradores e caçadores nas 24 horas que antecedem a eleição, no dia da votação e nas 24 horas posteriores. Apenas "integrantes das forças de segurança em serviço junto à Justiça Eleitoral e quando autorizados ou convocados pela autoridade eleitoral competente" poderão portar armas. E "a força armada se conservará a cem metros da seção eleitoral...". A deputada não se enquadra.
Não é segredo que existe uma espécie de seletividade penal no Brasil, que está relacionada ao racismo estrutural. É o tipo de coisa que levou um ex-deputado e apoiador do governo a ser tratado com deferência depois de receber a balas e granadas os policiais federais que cumpriam o mandado expedido pelo fato de ele, mesmo em prisão domiciliar, ter acessado redes sociais e ofendido uma ministra da Suprema Corte.
Conseguem imaginar o que provavelmente teria acontecido se os tiros tivessem partido de uma arma empunhada por um negro?
Como escreveu a poeta e psicanalista Eliane Marques no jornal gaúcho Zero Hora esta semana, "até pouco tempo, embora permanecêssemos estruturalmente racistas, era vergonhoso se dizer racista. O reconhecimento poria fim à ilusão da democracia racial e a subilusão de que cada um estava no seu lugar, de nenhum ou de todo privilégio, por seu próprio mérito, descrédito ou destino."
Episódios como o do sábado (29) demonstram que a ilusão acabou, e a vergonha de discriminar, perseguir e subjugar pela cor da pele também.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.