Em 2018, fui a Roma para escrever sobre um workshop da Pontificia Università della Santa Croce, a faculdade da Opus Dei. Entrei esperando topar com cosplayers do monge sinistro que taca o terror em "O Código da Vinci" e saí com uma impressão distinta.
O ambiente exalava conservadorismo de sapatênis, e os papos estavam em sintonia com os nossos tempos. Não havia qualquer simpatia por bandeiras progressistas, mas os palestrantes se esforçavam para aprender a língua do inimigo. Preocupavam-se se valia pregar para os convertidos de sempre ao lidar com um tópico tão caro a eles como o aborto.
Uma publicidade com o alerta "a cada 26 segundos uma criança morre sem ver a luz do dia" pintava a mulher que aborta como assassina. Vacilo deles. Afinal, elas são milhões e estão inclusive nas igrejas. Era preciso repensar a estratégia.
Não sei se chegaram lá, até porque o discurso dominante em círculos cristãos continua fazendo pouco caso das mulheres que morrem aos borbotões em clínicas clandestinas e ainda enche de culpa as que interrompem a gestação nos casos em que a lei o permite.
"Ah, mas a Bíblia diz..." Não, não há nada categórico ali sobre o assunto. Há voluntarismo interpretativo para sustentar que ela protege a vida desde o útero, algo feito mesmo com o genérico "não matarás". Não que o outro lado seja mais persuasivo nesta contenda tão polarizada.
Ainda prevalece, em boa parte da esquerda, a ideia de que quem se contrapõe ao aborto padece de atraso civilizacional. Não é muito simpático atrair alguém para uma causa se a toda hora essa pessoa se sente insultada ou tutelada pelo interlocutor.
Até porque não há bala de prata para encerrar a querela. Há muitas hipóteses, mas não consenso científico, que dirá metafísico, sobre quando dá para definir com segurança o marco zero da vida. Quando o coração bate? A primeira sinapse se estabelece?
Para alguns, o feto seria só uma extensão do corpo materno até sair do ventre, argumento que na ponta do lápis justificaria um aborto tardio quando a vida extrauterina é viável. Aí só fica parecendo, para quem já chega desconfiado à conversa, que progressistas não estão nem aí para aquele serzinho. Pense com eles: se não aceitamos matar um bebê nascido há um dia porque sua mãe não o quer, por que seria ok ceifá-lo na barriga?
Talvez você já tenha opinião formada sobre o tema. O que questiono é: estamos conseguindo abrir um debate honesto, com menos certezas e mais empatia, ou só jogando para a nossa torcida? Lembrando que, se for levar a questão para a queda de braço, os músculos conservadores ganharam muita massa nos últimos anos.
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