Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (Ed. Ágora) e "Educação ou o quê?" (Ed. Summus).
O mar e eu
Vi o mar sem saber o que era. Já tinha até atravessado o oceano num transatlântico sem ter me dado conta de que andava pelo meio dele, do grande Atlântico. É que então eu tinha só três aninhos.
Em agosto de 1939, em Gênova, o navio Conte Grande fez uma de suas últimas viagens --antes da Segunda Guerra-- comigo a bordo.
Depois o Atlântico deixou de ser navegável. Durante a Segunda Guerra Mundial os submarinos alemães afundavam navios, não importava se fossem de carga ou de passageiros.
Da nossa cabine eu me lembro, do convés também e ainda da festa carnavalesca que se fazia ao deus Netuno, ao atravessar o Equador. Não sei se ainda se faz isso.
Navegando, não via o mar. Na minha imaginação infantil, o mar era um grande piscinão amarelo.
Um dia, quando eu já tinha sete anos, toda a família tomou um trem na estação da Luz para descer até Santos. Foi um grande dia.
Descer a serra de trem era uma viagem complicada. Chegamos a Santos e tomamos um bonde. Ele seguiu por uma longa rua que mais tarde vim a saber que se chamava Conselheiro Nébias --em São Paulo também tem uma rua com esse nome e até hoje não sei quem é essa pessoa. O que terá feito esse tal de Conselheiro Nébias?
Fiquei esperando ansiosa vislumbrar o piscinão da minha imaginação. Até hoje, fechando os olhos, eu ainda vejo o tal piscinão dourado. O sol não estava forte e o bonde ia andando.
Repentinamente uma vergonha me inundou: eu estivera enganada. Me enganei! Vi um mar que não era aquele que eu tinha imaginado. Ele era totalmente diferente. A vergonha se apossou de mim. Eu estava com vergonha e não queria confessar que não conhecia o mar. Ninguém sabia que o meu mar não era um mar de verdade, era pura ilusão. Até hoje, lembrando-me desse episódio, uma ponta de vergonha toma conta de mim. A sensação desse momento, que ocorreu há 70 anos, não esmaece.
Tive vergonha de ser uma pobre menina de sete anos, talvez a única da minha rua, talvez a única da minha classe, que nunca tinha visto o mar. O fato de que eu tinha atravessado o Atlântico de norte a sul --de Gênova a Santos-- não adiantava nada.
O oceano é grande demais para uma criança entendê-lo. O bonde foi se aproximando da praia do Boqueirão e aí vi o mar de todo mundo. O mar dos meus colegas --que não era alto-mar, era praia. O alto-mar era só meu e de uns tantos adultos. Foi um grande momento da minha infância.
Para uma criança, ser igual é muito mais importante do que ser diferente. Que importa atravessar o Atlântico para quem nunca viu uma praia?
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