Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Antonio Prata

Chamem o Sr. Miyagi

Vocês devem se lembrar do filme. O franzino Daniel San sofre bullying no colégio, é humilhado, apanha de um loirão perverso na frente das meninas.

Daniel San, porém, tem a sorte de conhecer o Sr. Miyagi, um velhote japonês que, sob o insuspeito biótipo de coala taciturno, esconde a ancestral sabedoria dos samurais. Daniel San pede ao Sr. Miyagi que lhe ensine caratê. O Sr. Miyagi topa. O garoto aparece no primeiro dia crente de que sairá de lá capaz de quebrar tijolos com a cabeça e derrubar portas com voadoras, mas o homúnculo o põe para pintar uma cerca. Daniel San reclama, até descobrir que a tediosa repetição de movimentos serve para exercitar seus braços e automatizar reflexos de autodefesa. Na luta final do filme, Daniel afasta os golpes do loirão perverso com as pinceladas de seus punhos.

Não sou um especialista em futebol, longe disso.

Sou mesmo, como prudentemente advertem essas letrinhas aí em cima, um "Estranho no ninho", mas a esta altura do campeonato somos 200 milhões de técnicos e até uma ema num ninho de canários se arroga o direito de dar seus trinados futebolísticos, de modo que arrisco aqui o meu diagnóstico: o que falta à "família Scolari" não é autoconfiança nem equilíbrio emocional, é pintar cerca.

Concordo com Nelson Rodrigues que sem paixão não se chupa nem um Chicabon, acontece que só com paixão tampouco se chupa um Chicabon: é preciso saber mover a língua e os lábios do jeito certo ou se acabará todo babado. Cheio de paixão, talvez, mas babado.

Um dos gols mais bonitos da história, em minha modesta opinião, é o quarto do Brasil contra a Itália, na final da Copa de 1970.

Da meia-lua, Pelé rola a bola pra direita, devagarzinho, em direção a um espaço vazio, fazendo com que todos nós pensemos, por um segundo: "Xi, Edson, pirou?". Eis então que surge Carlos Alberto em desabalada carreira e, antes que nos recuperemos da surpresa, solta um canhão em direção ao gol. O chute do Carlos Alberto é lindo. Mais lindo, porém, é o passe do Pelé. Ele não olha pra trás. Carlos Alberto não grita. Como Pelé sabe que ele virá? Sabe porque ele e Carlos Alberto vinham pintando muita cerca juntos. Eles treinavam. Se conheciam. Aquilo era um time e num time, como num casal, chega uma hora em que um fala saúde antes mesmo de o outro espirrar.

Muitas vezes senti que faltava magia ao nosso futebol. Hoje, parece que falta futebol à nossa magia. Há entrega, suor e lágrimas, mas não entrosamento, tática, ritmo -e não é sendo mais agressivo ou respeitando menos o adversário que o futebol virá: é pintando cerca. Não dá mais tempo? Bom, então só nos resta isso aí: cantar o hino aos berros e torcer para que, se não der pra ganhar na bola, a gente ganhe no grito.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.