Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata
Descrição de chapéu

A mostarda vagabunda

Ela é um pequeno exemplo da mesquinharia donde nascem as tragédias

Ilustração
Adams Carvalho/Folhapress

Levanto o pão do x-salada, aperto o tubo de mostarda e lá de dentro escorre a decepção, gosmenta a algo translúcida, mais pro amarelo esquálido de um pintinho molhado do que pro sol a pino que 
deveria iluminar a folha de alface: poucas coisas me deixam mais triste do que uma 
mostarda vagabunda.

Mentira. Muitas coisas me deixam mais triste do que uma mostarda vagabunda. Um cientista picareta que viaja pelo Brasil, pago por fábricas de tratores e fertilizantes, dizendo a agricultores que o aquecimento global não existe; abrigos públicos onde crianças com deficiência crescem desabrigadas, sem remédios, higiene, lazer; as regras criminosas que a prefeitura estipulou para a concessão dos parques paulistanos, focando só o Ibirapuera e desobrigando a iniciativa privada a fazer qualquer investimento nas áreas da periferia; litros de leite derramados no asfalto por conta da greve dos caminhoneiros (ou das empresas de transporte?); eleições na Venezuela; guerra do tráfico; guerra na Síria —só para citar algumas (poucas) notícias da última semana.

(De uns tempos pra cá, ler o jornal virou um ato de masoquismo. Estou pensando em cancelar as minhas assinaturas e investir o dinheiro num chicotinho. Se é para me autoflagelar, chibatadas são mais eficientes e não ocupam espaço no iPad).

De fato, mostarda vagabunda não mata ninguém. Não derrete as calotas polares. Não causa migrações em massa. Não condena crianças com paralisia a uma vida terrível. Não fará com que uma idosa tropece num buraco no parque Jardim Felicidade e quebre a bacia. Mas ela é uma metonímia, um pequeno exemplo da mesma mesquinharia donde nascem também as grandes tragédias.

Veja, ninguém precisa de mostarda. A mostarda é supérflua. Por isso mesmo não há razão que justifique uma mostarda vagabunda. Um pão vagabundo mata a fome. Fazer um pão insosso e mais barato talvez seja necessário para encher a barriga de milhões. Braços e pernas trabalham com a mesma força movidos à baguete de levain ou à bisnaguinha Seven Boys. Pão é alimento para o corpo. Mostarda é alimento para a alma.

Quem rezaria para um Deus meia-boca? “Ah, sei que tem esse Deus aí que criou a luz, o mar, a terra, o céu, que soprou a vida no nariz de Adão e Eva e “Blackbird” no ouvido dos Beatles, mas prefiro meu deuzinho chinfrim, mesmo, meu deuzinho raquítico que é incapaz de tirar um coelho de uma cartola ou de assoprar “Atirei o pau no gato” no ouvido de um mendigo”. Quem almeja se apaixonar por uma pessoa feia, burra e com micose na unha do dedão? Que criança deseja se tornar um jogador perna de pau? Um cantor fanho? Ninguém. A mostarda só existe para ser saborosa. Se não é saborosa, não tem razão de existir.

Gostaria de escrever uma carta aberta ao digníssimo produtor de mostarda vagabunda repreendendo-o por sua afronta às papilas gustativas do Brasil, mas sei que a culpa não é só dele. Há uma longa cadeia envolvida no processo. Ele faz a mostarda vagabunda. A transportadora distribui (bem, não nestes dias). O supermercado vende. O dono da lanchonete compra. A gente bota no x-salada e a vida, por uns minutos, perde um pouco do sabor.

Bem pouquinho, é verdade, mas é de pouquinho em pouquinho, também, que o chão do parque racha, que as calotas derretem, que as discordâncias se transformam em guerra e que 
o mundo vai para a cucuia.

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