Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Antonio Prata

Soneto da reparação

Nos lembraremos de Nirlando Beirão bonito, jovial, risonho e culto

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ilustração da coluna do Prata do dia 10.mai.20200
Adams Carvalho/Folhapress

A vida foi generosa comigo: me deu dois pais. Conheci meu padrasto, Nirlando Beirão, numa noite em 1982. Eu tinha cinco anos, ele, 33. Quando chegou lá em casa eu estava numa mesinha de criança,
ao lado da minha irmã, comendo um ovo mexido.

A imagem ficou gravada na memória deste ângulo, de baixo pra cima, ele alto, bonito, cabeludo e barbudo, como num enquadramento da Leni Riefenstahl ­—caso a cineasta, querendo limpar sua barra após embelezar atletas do Terceiro Reich, decidisse voltar sua câmera para doces bárbaros nos trópicos. Nirla e minha mãe se casaram naquele ano e morei com ele até a adolescência.

Se criar filho já é duro, imagina criar enteado. O Nirla, no entanto, nunca me deu uma bronca. O que ele me deu: uma irmã, a Julia. Uma tatuagem de dragão, trazida de Tóquio, que ia da cintura até o pescoço. (Passei a ir pra escola sem camisa, de shorts e bota de caubói —nunca fui tão elegante quanto aos cinco anos de idade).

Quando caiu meu primeiro dente, Nirlando deixou uma carteira embaixo do meu travesseiro. Na fase em que fui goleiro, deu as luvas. Depois, quando eu virei skatista, lá pelos dez anos, me deu o apelido de “Gralha”, que, na gíria do ramo, queria dizer skatista ruim e falastrão. Nunca me chamou de outra forma, senão de “Gralha”.

O mais perto que o Nirla chegou de uma admoestação foi na minha adolescência: durante uns três anos, toda vez que eu me aproximava da cozinha ele dizia, com um sorriso irônico, mais cúmplice do que testemunha de acusação: “larica, hein, Gralha?”.

Na época da faculdade de Ciências Sociais, não tinha autor que eu estudasse sobre o qual ele não me desse uma aulinha, contasse uns casos, puxasse uns livros da estante e me emprestasse.

Mais tarde, soube que com a Maria, minha irmã, que estudava moda, era a mesma coisa. Sua cultura, sem nenhuma afetação, ia de Karl Marx a Karl Lagerfeld, de Levi-Strauss, o Claude, a Levi-Strauss, o jeans.

No time do Nirla jogavam Platão, Sócrates, Casagrande e Wladimir —o Nabokov, o Herzog e o maior de todos, ele iria concordar, o glorioso camisa 4 da Democracia Corintiana.

Nirla morreu na quinta retrasada, depois de meia década lutando contra a ELA, esclerose lateral amiotrófica. Não houve velório e o enterro, em Belo Horizonte, foi acompanhado apenas por poucos dos queridos Beirões, de máscaras e sem poderem se abraçar.

Na última quinta, porém, em vez de uma missa de sétimo dia, fizemos um Zoom com família e amigos próximos. Lembramos de histórias bonitas. Cantamos “Breve Amore”, rock italiano dos anos 60.

Assistimos a um clipe com fotos da vida toda ao som de “Here Comes the Sun” na voz de Nina Simone. Vimos um vídeo nosso, no final da festa de 69 anos do Nirlando, cantando “Eu Sei Que Vou Te Amar”. Brindamos remotamente. Choramos copiosamente.

Eis então que de repente, não mais que de repente, do pranto fez-se o riso e do riso fez-se o espanto: a imagem do meu padrasto combalido na cadeira de rodas desapareceu —aquele já não era ele, era ELA. Foi como se ele se erguesse e se mostrasse novamente diante de nós como o conhecíamos. Bonito. Jovial. Risonho. Culto. Delicado. Grandioso. Leni Riefenstahl filmando-o numa página de Panamérica ao som de um rock italiano.

É assim que ele ficará guardado em mim e em todos que tivemos o privilégio de cruzar o seu caminho. Obrigado por tudo, Nirla. Um beijo deste “Gralha” lariquento que teve a honra de crescer ao seu lado. “Adio, my darling” —e vai, Corinthians!

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.