Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Quem não gosta de cachorro?

Boatos levam alguns a duvidar do meu caráter, mas 'minha pele, minhas regras'

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Antonio Prata

Há, entre meus conhecidos, o mito de que não gosto de cachorro. Boatos infundados levam alguns, até, a duvidar do meu caráter. (Em 2020, machismo, racismo e homofobia não fazem cócegas na pústula moral de "não gostar de cachorro").

Tô tranquilo. Acho cães bonitos, inteligentes, fiéis, generosos etc. Minha única restrição (vale a mesma regra para qualquer outro mamífero, ovíparo, bípede, quadrúpede, bicéfalo ou unicórnio) é: sem minha anuência, não lambe, mano. Pode parecer antiquado, mas levo a sério a troca de fluidos. Minha epiderme, minhas regras.

Pensa no Luis Fernando Verissimo. Um dos melhores seres humanos que já caminharam sobre a Terra, a quem admiro e quero bem. Digamos que ele se atirasse sobre mim, sei lá, numa Flip, envernizando minhas orelhas com a própria saliva. Digamos que eu me afastasse, chocado. Seria correto dizer "ah, o Antonio não gosta de Verissimo"? Seria eu visto como uma pessoa estranha? Um coração endurecido?

Se não deixo o grande mestre me lamber --devo dizer, em sua defesa, que nunca demonstrou qualquer inclinação para isso--, por que diabos eu deveria tolerar mesma atitude de um cachorro? Desconhecido? E a verdade é que todo cachorro, conhecido ou desconhecido, me lambe. É ou não é uma relação abusiva?

Era. Pois na última semana conheci, finalmente, um cão que não lambe. Uma cadela, na verdade, cujo comportamento, de tão virtuoso --não só no que tange o autocontrole lingual-- me fez corar por reconhecer-me parte desta espécie obtusa que usa o feminino do cão para ofender as mulheres.

Grafitti multi-colorido da cara de um cachorro. Fundo Amarelo e detalhes preto, ciano, vermelho e magenta
Ilustração de Adams Carvalho para a coluna de Antonio Prata da edição de 11.out0.2020 - Adams Carvalho

Meio beagle, meio vira-lata, ela chegou na varanda do sítio durante um churrasco e aboletou-se num canto. Não veio me oferecer sua baba nem se aproximou da família, ciente, pensei, de que estamos num momento de distanciamento social. Não latiu nem pulou nem lambeu.

Muito esperta, suspeitei. Tá se fazendo de cool com essa cara de quem não quer nada, daí a gente dá uma gordurinha de picanha, ela nunca mais vai embora, faz cocô na varanda e se bobear ainda me lambe.

Minha querida sogra, grande protetora dos animais --parte do grupo que me olha suspeito por eu alegadamente não gostar de cachorro-- logo foi buscar uma tigela com água. A cadela, porém, não bebeu.

Entendi a recusa como uma resposta à minha desconfiança, quase um statement: "não vim em busca de nada, ô, bocó, tô só aqui no meu rolê, desfrutando da companhia, beleza?". Meu filho jogou um pedaço de salame. Ela olhou, cheirou, recusou. Estaríamos diante de uma cadela vegetariana? Quem sabe, talvez, macrobiótica? Ou numas de jejum intermitente?

Minha sogra chegou mais perto e entendeu. Aquela lady da boa etiqueta era uma senhora banguela. Idosa, não tinha um único dente, mas nem por isso perdia a fleuma. Passou a noite conosco. Lá pelas 23h, deu umas latidas, não sei se afastando algum gambá ou só querendo mostrar serviço. Quando acordamos, havia partido

Senti que algo tinha mudado em mim --mas não durou muito. No dia seguinte, de coração mole, recebi na varanda um basset perdido. Em segundos, ele estava usando minha panturrilha como objeto sexual. Em respeito ao Verissimo e aos leitores, me abstenho de projetar em vossas mentes (e panturrilhas) qualquer paralelo.

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