Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata
Descrição de chapéu

Harmonização facial, social, global

De que adianta uma cara novinha em folha se todo o seu entorno continua igual?

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Vinte anos atrás chamariam de transtorno de personalidade, hoje chamam de harmonização facial. A pessoa ficou famosa pelo vídeo de um gato comendo pudim? Por postar uma dancinha no TikTok, escovando os dentes? Pronto, decide que o rosto com o qual viveu até ali, antes de elevar-se acima dos mortais de pouco engajamento, não lhe serve mais.

Era uma face comum, fuça pra pouco like. Dá então uma recauchutada na dentadura, ganhando um luminoso sorriso Mentex que chega a funcionar como lanterna durante a noite e em alguns casos, até, a recarregar baterias de luz solar.

A pessoa injeta um contorno de mandíbula a la Sergio Moro, pra dar aquela virilidade equina (ou bovina?). Afina o nariz, claro, pois apesar de Zumbi e Martin Luther King, Angela Davis e Sueli Carneiro, o sucesso ainda é caucasiano. Redesenha as sobrancelhas, engorda os lábios, tira as rugas, puxa daqui, estica de lá e tchanam: harmonizado está.

Ilustração de uma pessoa de perfil com cabelos curtos vestindo terno, camisa e gravata com uma palavra escrita no fundo da imagem. A composição da ilustração foi dividida em pedaços e colada de outra maneira, fazendo com que os pedaços fiquem juntos em outra ordem.
Adams Carvalho

Pergunto-lhes: de que adianta uma cara novinha em folha se todo o seu entorno continua igual? Dezenas de milhares de reais podem ir pro lixo se você, felizão com o rebranding do pescoço pra cima, seguir com a mesma turma do ombro pro lado. Não tem botox que resista a uma visita do parça Rodriguêra de regata e Rider –ainda mais se postarem selfies fazendo hang-loose.

Pensando em otimizar sua harmonização facial, imagino para 2022 uma empresa que ofereça uma série de serviços paralelos. O primeiro deles é a harmonização social. Assim que você tirar os pontos, eles editam seus contatos. Ranqueiam de 0 a 10 cada um dos seus amigos, conhecidos e familiares.

O Driguêra de regata e Rider te serve para algum propósito? Colabora em sua caminhada rumo ao sucesso? Te dá uma pegada roots, espontânea, malemolente? Ou funciona como uma âncora te puxando pro mundo odiento em que você se atolava antes de filmar o gato comendo pudim? A, digamos, HGLB (Harmonização Global Life Building) encara as relações como pontes –e de que serve uma ponte que dá pro precipício?

Não basta, porém, ter a cara e as relações certas se você continuar com os mesmos gostos. Não que haja algo de errado especificamente com seus gostos. O problema é que eles são seus: foram criados sem um objetivo, uma meta, perduram no tempo sem se adaptarem às últimas tendências estéticas e políticas.

A empresa não só redesenhará sua vida pregressa nas redes sociais –o chamado "past empowerment control"– como fará uma curadoria personalizada dos seus gostos daqui em diante. Você nunca mais passará por aquele perrengue de sair de um Bacurau, de um Zé Celso, de um Dave Chappelle sem saber se deveria ter amado ou detestado. Jamais sentirá novamente o frio na barriga ao se dar conta, num silêncio de Maracanazo, de que elogiou um artista cancelado.

O cliente poderá acompanhar diariamente, em seu próprio celular, a oscilação da bolsa de valores culturais. Antes de sair de casa saberá se tá a favor ou contra o Tiago Leifert nas tretas das redes sociais, se pega bem falar "viva o SUS!" ou "não aguento mais essa porra de máscara!", se citar um filme do Woody Allen soará como uma pimenta no politicamente correto ou te levará pras catacumbas da trolagem geral.

HGBL contará também com o termômetro da diversidade, que te garantirá o "Selo Amigo Plural" e o "MeritocraTinder", que avisará na hora em que seu cônjuge, namorado ou afins não estiver mais dando match com sua posição hierárquica no processo de fritura do torresmo. Já tenho até um slogan. HGLB (Harmonização Global, Life Building): porque uma vida não monetizada não merece ser vivida.

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