Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Comprando uma britadeira

O que fazer com uma britadeira? Se a vida, com seu manancial de oportunidades, não apresentar situações "britadeiráveis", é possível achar umas brechas

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Quando dei por mim estava petrificado, na Leroy Merlin, diante de uma britadeira. Dez mil reais. Parcelando em doze, calculei, daria uns 800 por mês. É caro? É. Mas rola? Rola. Por que não?

O que eu faria com uma britadeira? Quebraria coisas, óbvio. Que coisas? Não sei. Mas tive certeza de que a vida, com seu infinito manancial de oportunidades, me apresentaria situações "britadeiráveis". E, convenhamos, mesmo que não apresentasse, a gente sempre pode achar umas brechas.

Meu amigo Márcio, por exemplo. Ele atira de arco e flecha. Quando comprou um arco, ele pensava em caçar faisões? Jacus? Imaginava se defender de um ataque apache? Não. Ele queria, com o arco, o mesmo que eu com a britadeira. Todo fim de semana ele vai a um clube e atira nuns alvos. Por que eu não poderia achar os alvos pra minha britadeira? Seria uma britadeira, digamos, para uso recreativo. Seria o meu caiaque. O meu drone. A minha pipa.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 31 de Julho de 2022, mostra o desenho de uma criança sentada em um trator/britadeira de brinquedo.
Adams Carvalho

Antes dessa racionalização, contudo, diante da britadeira, tentei me convencer de sua utilidade. Que casa não tem uma parede, uma mureta, uma pia, que seja, que não possa ser derrubada? E mesmo que não haja. Não temos amigos? Família? Será que nenhuma pessoa no meu ciclo de amizades precisa quebrar um piso? Uma laje?

Caso não houvesse nenhuma utilidade possível, cheguei a me imaginar no crime. Como um pichador. Sairia de casa à noite, britadeira no porta-malas. Iria, sei lá, pra Vila Nova Cachoeirinha. Pra Jundiaí. Angatuba. Quebraria uma calçada, derrubaria uma estátua e voltaria a milhão no carro, fugindo. Numa vibe mais civilizatória, quem sabe não me ofereceria como voluntário em demolições? (Galo de Luta: vamos derrubar o nefasto Borba Gato?).

Não foi a primeira vez que senti este comichão. A Leroy Merlin mexe em algo muito profundo "do meu eu". Algo de "homem branco hétero cis" do século 20. (Desculpa. Eu sou). Casa & Construção também tem esse poder.

Dez anos atrás, fui morar na Granja Viana. Fiquei cinco minutos diante de um machado. Era que nem de desenho animado. Pica pau. Cabo de madeira, lâmina vermelha com a parte afiada metálica. Tentei me convencer: moro no campo.

Um dia, uma árvore vai cair no meio da rua. Alguém perguntará: "quem tem um machado?!". E eu apareceria. Cortaria a árvore. Sairia como herói. Não me convenci. Eu não seria sequer capaz de usar o machado. Talvez matasse ou morresse no processo.

Dez mil reais. Dividido em doze... O machado era bem mais barato. Assim como cem metros de corda. Uma peixeira. Um carrinho de mão. Outro dia, voltando de uma festa, passei diante da Leroy. Movido pela empolgação pós quarentena e pelos eflúvios do álcool, mudei o destino do Uber. Entrei. Um ombrelone: quem não quer? Um carrinho de mão: vai saber quando se precisa? Tijolos, cimento, areia: é sempre bom estar prevenido. Cordas. Cem metros de cordas. Duzentos. Se eu tiver que amarrar a árvore caída e cortada com o machado pra levar no carrinho de mão?

Sim. Sou um homem branco, hétero, cis, frágil e perdido como Tony Soprano ou Walter White. Não peço, de forma alguma, a vossa compaixão. Todo mundo tá mais ferrado do que eu. Eu sei. Mas tem um vazio no peito que, no corredor de "ferragens" da Leroy ou na gôndola de "furadeira e brocas" do Casa & Construção, sinto que pode ser preenchido. Dez mil. Parcelado em doze. Dá?

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