Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Três homens e uma marreta

Bisbilhotando uma demolição, invejei a certeza do trabalho deles

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Isso parece, sei lá, um título troncho dado pelo ChatGPT 4 para uma comédia da Sessão da Tarde. (O ChatGPT 5, mais aprimorado, provavelmente o batizaria como "Três homens e uma marreta muito louca"). Não tem nada a ver, no entanto, com Sessão da Tarde ou IA: foi o que vi pela janela logo após despertar de sonhos tranquilos e encontrar o bufê vizinho metamorfoseado numa monstruosa demolição.

Vou deixar para outra crônica os lamentos sobre um mastodonte sendo erguido a três metros do meu nariz, sobre a desgraça que é vivermos numa cidade que etc. O assunto aqui é outro.

Há meses, passo longos minutos bisbilhotando o trabalho, sete andares abaixo. Na primeira semana foi só marreta. Em poucos dias, três caras de macacão azul e capacete amarelo derrubaram o telhado e todas as paredes do casarão. (Quando chegavam perto dos batentes e das esquadrias, vinham com uma marreta menor e talhadeira, iam recortando em volta, com esmero, até tirar as janelas e portas intactas).

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de S.Paulo no dia 21 de Maio de 2023, mostra o desenho de uma bola branca de papel amassado.
ilustração de Adams Carvalho para coluna de Antonio Prata de 20 de maio de 2023 - Adams Carvalho

Quando restou só estrutura de concreto armado —pilares, vigas, lajes—, a brincadeira ficou mais interessante. Com marteletes (umas minibritadeiras —ou, deveria dizer, megafuradeiras?) eles foram escavando o concreto armado, até ficarem só as redes de vergalhões, que eram cortadas com maçarico.

Quarta passada, começaram a recortar uma laje de uns 12 metros quadrados, no martelete. Não entendo patavinas de (des)construção civil, mas intuí que uma hora aquele rinoceronte ia desabar e se espatifar no chão, três metros abaixo. Dia após dia, assisti ao corte da laje como se fosse novela, até sentir que ontem era o capítulo final da trama. Terminado o trabalho do martelete, o outro maçaricou os metais, e a laje veio abaixo como um Odete Roitman de cinco toneladas, deixando não um rastro de sangue na parede, mas um cogumelo atômico de poeira.

Nos primeiros dias de demolição, achei que o meu interesse brotava de algum instinto ogro, um rincão Homer Simpson do meu córtex. Aos poucos, porém, fui entendendo que era bem o contrário. O que eu invejava nos demolidores era apolíneo, não dionisíaco. Invejava a certeza daquele trabalho, o contrário do meu. Eles chegam numa obra pronta e vão desmontando. Eu paro diante da página em branco e vou construindo. Eles sabem, desde o início, aonde vão chegar e cada passo que darão para tanto. Eu passo semanas diante de dois pilares com sete janelas. Derrubo. Ergo três portas e um telhado. Apago tudo e recomeço só pela caixa d’água, uma caixa d’água gigante, de 500 mil litros, que não tenho a menor ideia de para que me servirá.

Tem vezes, não raro, que depois de dias, semanas, meses ou anos eu descubro que não havia obra nenhuma a ser construída sobre aquele terreno. Entre as frases abandonadas já cresce mato, sujeitos molambentos chutam objetos diretos e indiretos em busca de predicados. Não é muito agradável.

Eu sei, eu sei que este senhor do sétimo andar é um privilegiado, que trabalha com o que gosta e goza de uma vida confortável, enquanto os três operários ganham mal para suar de sol a sol, sonhando em ser jogadores de futebol, astronautas, médicos, tiktokers ou xás da Pérsia. Não é disso que tô falando. (Ainda existe espaço pra crônica ou ela já foi cancelada em nome das guerras culturais?).

O que eu queria dizer é que, às vezes, eu não queria dizer nada. Queria pegar uma marreta ou um martelete e sair quebrando tudo até que houvesse só um papel sulfite de 2.000 metros quadrados. Outro que decida o que erguer ali.

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