Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Batman e Sancho Pança

Um filho adulto não é bem um irmão mais novo, mas dá pra encaixar no mesmo escaninho

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Trabalho novo, a equipe se conhecendo, a diretora se apresenta, "Maria Julia, pode me chamar de Maju, e você? Te chamo de Antonio? Tonico? Prata? Pratinha?". Digo que cada um me chama de um jeito, ela pode escolher ou até inventar um apelido. "Mas e a sua família, te chama como?". "Meus irmãos, de Antonio. Minha mãe, de Tonico. E meu pai, faz uns dez anos, só me chama de Leonel". "Leonel?!"

Rita é a filha mais velha dos meus avós paternos. Depois vem meu pai, daí o Leonel, a Ruth e o Zé Maria. Durante muitos anos —não muitos, na verdade, mas durante os anos de formação do meu pai— Leonel era o cara mais novo ao lado. Seu Sancho Pança. Seu Robin. O passageiro do carrinho acoplado à moto, caso vivessem num filme do Indiana Jones.

Eu entendo o raciocínio —ou a falta de. Um filho adulto não é bem um irmão mais novo, mas dá pra encaixar no mesmo escaninho. É como apertar um parafuso Philips com uma chave de fenda. Entra, apesar de dar uma espanada nas, digamos, bordas da realidade. Não é nada pessoal. Pelo contrário: é a troca da pessoa. E por uma questão de neurótica isonomia, aliás, faz anos que ele só chama o Leonel de Antonio –como quem tira uma porca com chave inglesa, para continuarmos na seção de ferragens.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 06 de Agosto de 2023, mostra o desenho, em close nos pés, de duas pessoas frente a frente usando pantufas.
Adams Carvalho

Meu pai está bem de cabeça e da saúde. Os comportamentos excêntricos que apresenta não têm a ver com a idade. Sempre foi assim. Uma vez que o visitei em Floripa e ele me recebeu no aeroporto de pantufas. "São alpargatas! Al-par-ga-tas!" Tiramos uma foto e mandamos pra minha irmã, formada em moda. "Desculpa, mas não tem a menor dúvida, isso é pantufa, pá." Ele me encarou por uns cinco segundos, circunspecto feito uma criança que perdeu no bafo uma figurinha cromada, então tirou a pantufa do pé esquerdo e –diante de uma fila de taxistas boquiabertos— me estendeu, meio que tentando se justificar, meio que tentando mudar o foco da conversa. "Olha só! Toda forrada de pele de carneiro! Veste p’cê vê! Muito melhor que Crocs!"

Eu lembro que uma vez, na primeira série, chamei a professora de "vó" e a classe toda caiu na gargalhada. Só fui entender o ato falho depois de ter filhos. Se passam o dia com a mãe e de noite vêm pra minha casa, certeza de que pelo menos uma vez vão me chamar de mãe. O contrário também é verdade. A presença do adulto em quem podem confiar é tão importante que o nome do último mandatário se confunde com o do que acaba de assumir o posto. Até na idade adulta sobra um resquício. Outro dia, depois de passar cinco dias viajando com a minha namorada, peguei um Uber e disse "Depois da caçamba, à direita, amor". (Não sei se isso fez com que a minha avaliação aumentasse ou diminuísse.)

Quando o meu pai começou a me chamar de Leonel, lá por 2010, eu reclamei. Depois desencanei e passei simplesmente a responder "O que foi, Ruth?". Das primeiras vezes, ao ouvir "Ruth", ele pedia desculpas e me chamava de Antonio. Agora só dá uma pausa (um terço da duração da pausa diante do veredito da pantufa) e segue o papo.

Temos convivido bem, assim. O problema é quando junta eu, meu pai, o Leonel e a Ruth. Quando meu pai diz "Leonel", eu e meu tio olhamos. Quando diz "Antonio", idem. Já quando eu ou o Leonel chamamos "Ruth", meu pai e a minha tia respondem. Talvez a saída seja voltar à primeira série: chamar todo mundo de vó. "E não se fala mais nisso!", como diz meu pai. Quer dizer, a Ruth. Ou melhor, minha vó.

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