Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Descrição de chapéu guerra israel-hamas

Bebês terroristas x colonialistas

É apelativo dizer 'poderia ser meu filho'?

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As pessoas enlouqueceram? A humanidade inteira foi mordida por cães raivosos? Não estou falando dos horrores da última semana, em Israel e na Palestina, mas das reações a eles. Ou, deveria dizer, das comemorações por eles?

Primeiro foi uma parte desmiolada da esquerda que, mundo afora, diante da barbárie do Hamas, soltou rojões. Não é uma metáfora: milhares de pessoas se reuniram diante da embaixada de Israel, em Londres e soltaram fogos de artifício, felizes. Aqui no Brasil, internet afora, também foi um foguetório. Afinal, na luta anticolonialista, vale tudo.

Mal me recuperei do asco, vieram as reações da direita, legitimando a morte de civis na Faixa de Gaza. Dizendo que é isso aí mesmo, tem mais é que bombardear todo mundo. Cortar a água, a luz, a entrada de alimentos e remédios para dois milhões de pessoas. Afinal, na luta antiterrorista, vale tudo.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 15 de Outubro de 2023, mostra o desenho de dois ventiladores desligados frente a frente e entre eles um castiçal com uma vela acesa.
Adams Carvalho

Que que deu nessa gente? Eles não descendem de gerações e gerações que mataram ou morreram no Oriente Médio. Não tiveram um irmão, uma filha, uma mãe vitimada pelo outro lado. Tô falando de pessoas que nunca pisaram no Oriente Médio, pessoas cujas entranhas não fervem na pira da vendeta: brasileiros, pacatos alunos da PUC, senhoras patuscas da Pompeia, o taxista do aeroporto, meu primo.

Estou há dias tentando escrever sobre o assunto. Estou há dias apagando o que escrevo. Uma hora o que leio na tela me parece pouco, diante da treva. Outra hora me soa apelativo. "Crianças queimadas" eu já escrevi e apaguei dez vezes. Mas como tentar chacoalhar essas macacas de auditório da selvageria, essas cheerleaders da crueldade sem descrever a realidade com a contundência que ela tem?

Bebês degolados por adagas do Hamas. Um menino de uns oito anos, inteiro queimado por um míssil israelense. É apelativo dizer "poderia ser meu filho"? Ou "poderia ser seu filho"? (Uma vez que, pelo filho dos outros, estamos vendo, ninguém se compadece). A mulher com a calça ensanguentada. A mulher seminua na traseira de uma caminhonete. Escolas bombardeadas. E gente batendo palma, dando coraçãozinho, compartilhando artes descoladas, hypando a morte.

Foram as redes sociais que nos jogaram neste fosso, incentivando um binarismo tacanho? Ou é esquerda ou é direita. Ou é colonizador ou é oprimido. Ou é LGBTQA+ ou é defensor do patriarcado. Ou é heterossexual ou é um invertido que deve ser curado, calado ou morto. Ou é preto ou é branco. Não existem tons de cinza, e qualquer ato do meu lado está certo, qualquer ato do outro lado está errado.

Se um empresário espancar uma velhinha, boa parte da direita vai defendê-lo. Se uma pessoa trans envenenar a mãe, boa parte da esquerda vai defendê-la. Cada lado tem em seu Vade Mecum palavrinhas mágicas que, uma vez pronunciadas, acreditam eles, encerram qualquer discussão. Comunista. Decolonial. Vai pra Cuba. Heteronormativo. Ideologia de gênero. Lugar de fala. Lei Rouanet. Mansplaining. A lista é longa.

Os rótulos, a serem colados em quem desvie um milímetro dos dogmas do grupo, têm um efeito duplo. Negam qualquer dignidade ao rotulado, ao mesmo tempo em que produzem uma total paralisia no raciocínio de quem os aplica. Se a doença acometesse apenas o cérebro, menos mal, mas também ataca o coração, que, todos sabem, é um órgão diretamente ligado à visão. Uns olham um menino palestino e enxergam "o" terrorismo. Outros olham um bebê israelense e enxergam "o" colonialismo. E todos vão pras redes. E bombardeiam violência. E depois voltam pra colher os likes, comentários e reposts —seus despojos de guerra. As pessoas enlouqueceram?

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