Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Contra a gravidade patriarcal?

Nenhuma contribuição à luta antimachista virá de privar estudantes de lerem Machado e Drummond

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Sempre me incomodou a frase "de boas intenções o inferno está cheio". Eu pensava: beleza, erros acontecem, mas as más intenções é que devem lotar as grelhas, fornos, caldeirões e airfryers do Belzebu, não? Frisar a boa intenção na desgraça me soava como uma postura cínica, zicando qualquer tentativa malograda de melhorar o mundo. Um salvo-conduto à canalhice. Afinal, quem há de negar que uma tentativa equivocada de fazer o bem é melhor do que uma atitude deliberada de fazer o mal?

Diante de algumas ações recentes da esquerda e seus enormes efeitos colaterais, porém, tenho visto o dito popular por outro ângulo: é mais difícil lutar contra uma burrice bem-intencionada do que contra um imbecil que quer "passar a boiada". O equivocado "a favor do bem" pode causar um grande mal, protegido pela armadura impenetrável da virtude.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 17 de Dezembro de 2023, mostra o desenho de um par de lâmpadas onde apenas uma está acesa.
Adams Carvalho

É como me sinto em relação à resolução da Fuvest de excluir autores masculinos da prova de literatura em suas próximas edições. Uma vez que a ideia nasce da virtuosa ambição de lutar contra o machismo, toda a crítica a ela é imediatamente tida como machista. E já sabendo que assim serei acusado, opino: nenhuma contribuição à luta antimachista virá de privar adolescentes de lerem Machado, Drummond, Rosa.

O mundo é machista. O machismo, excluindo metade da população mundial do acesso ao estudo e ao debate na esfera pública, fez com que as maiores obras na literatura, nas artes e nas ciências, nos últimos milênios, tenham vindo de homens. Isto não é uma opinião, é um fato. As mulheres estavam oprimidas e caladas. Achar que pra cada Sócrates, Platão ou Aristóteles, para cada Hobbes, Rousseau e Locke, para cada Machado, Graciliano ou Rosa, existam obras equivalentes femininas até hoje ocultas, que brotarão ao se excluir as obras masculinas, é negar a existência e a eficácia do machismo.

É evidente que havia, na Grécia antiga, no iluminismo ou no século 19, no Brasil, mulheres tão ou mais capazes do que esses caras. Mas a estrutura patriarcal não permitiu que elas estudassem, tivessem a chance de se manifestar, publicassem. O resultado é que o cânone ocidental é primordialmente masculino.

Nos últimos cem anos entraram no debate negros, mulheres, povos originários e outros atores excluídos que, lendo à contrapelo o nosso cânone, ajudaram a revelar o tanto que a visão branca, masculina e eurocêntrica moldou a nossa história. Isso só enriquece o conhecimento. A introdução das cosmogonias e cosmologias africanas, ameríndias e asiáticas engrandece a cultura. É fundamental incluir mais vozes de mulheres, negros e outras "minorias" na conversa. Mas ninguém, em bom juízo, vai jogar fora a teoria da relatividade porque Einstein era um homem branco, hétero, cis e alemão –pelo menos, era o que eu pensava, até essa patacoada da Fuvest, de excluir autores homens de sua lista literária.

A ação afirmativa é um grande legado das lutas pelos direitos civis, dos Estados Unidos ao mundo. É urgente dar a qualquer pessoa a oportunidade de usufruir de todo o conhecimento produzido pela humanidade. É urgente incluir nesse conhecimento todas as vozes que até então tenham sido caladas. Mas é bizarro reduzir esse conhecimento calando vozes que o produziram. É a anti-cota. O burrismo institucional. O fato de Newton ser um homem branco, hétero e cis não muda em nada a lei da gravidade. A fundamental luta decolonial não fará com que as maçãs caiam pra cima.

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