Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

O pior surdo é o que não quer ouvir

Surdos perderam, talvez, o prazo de inscrição para a inclusão nos protocolos do politicamente correto

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O cego chega no cruzamento e chove gente querendo ajudar. O surdo manda um "quê?" no caixa e recebe um urro na orelha: "CRÉDITO OU DÉBITO?!". Por alguma razão, acham que o surdo é um preguiçoso, um desleixado que não fez o esforço suficiente para escutar o que foi dito. É mais ou menos como viam os gordos tempos atrás, antes da luta identitária incluí-los em seu cabedal.

Os surdos devem ter vacilado em algum momento. Perderam, talvez, o prazo de inscrição para a inclusão nos protocolos do politicamente correto, perdendo, assim, o bonde da história. Eis aqui uma frase que você nunca ouvirá —e não por ter qualquer problema no ouvido: "Nossa equipe é super diversa, veja só, temos aqui negros, indígenas, mulheres, trans e um deficiente auditivo".

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 18 de Fevereiro de 2024, mostra o desenho do rosto multicolorido de uma pessoa com uma faixa gráfica de cor branca entrando em seu ouvido.
Adams Carvalho

Antes que me acusem de não ter lugar de fala, aviso: eu padeço de problema nos ouvidos. O que não tenho é lugar de escuta, prejudicada pela otospongiose, doença que acomete cerca de 10% da população mundial. Dentro do ouvido temos três ossinhos: martelo, estribo e bigorna. Por causas desconhecidas, em algumas pessoas esses ossinhos vão ficando esponjosos e o que deveria fazer um tic-tac ao vibrar dos tímpanos passa a soar abafado como um poc-poc. Não tem cura, mas costuma ser um processo bem lento. Segundo meu otorrino, no ritmo da minha perda, quando eu ficar totalmente surdo já estarei morto há décadas.

A perda, contudo, incomoda e como não pretendo passar meus dias restantes sobre a Terra sob berros de "CRÉDITO OU DÉBITO?!" ou "ABAIXA A TV!" ou "PODE VER IPAD, PAPAI?!", comecei a usar aparelhos. É curioso quanta gente eu descobri, depois que comecei a tocar no assunto, que também precisa usar aparelhos auditivos. Mais curioso ainda é a maioria avassaladora destas pessoas não os usar. Talvez porque associemos o uso destas traquitanas à velhice —assim como a ela associamos a palavra "traquitana". Acontece que cabelos brancos, calvície, rugas e pelancas também são sinais da passagem dos anos e as pessoas não costumam ter muito pudor em relação à tintura, implantes, plásticas, botox ou silicone.

Sem falar nos óculos. Ninguém deixa de usar quando surge a "vista cansada". Conheço uma única pessoa, contudo, que aderiu aos aparelhos auditivos. Lanço aqui, portanto, uma campanha:

#APARELHAMENTO #ESCUTAESSA #VALEOOUVIDO #APARELHAGEM #NÃOOLVIDEOOUVIDO

Não me engajo na causa só por me preocupar com a saúde e a segurança dos meus amigos —a perda de audição causa depressão, degeneração neurológica; deficientes auditivos que usam aparelho vivem, em média, três anos mais do que os que não o usam. Lanço a campanha, também, porque não quero ser o único na praça com um araminho —discretíssimo, diga-se de passagem— entrando pelo ouvido. Já fui "quatro olhos", pretendo evitar o "quatro ouvidos".

Vamos lá, amizades. O troço conecta no bluetooth, o celular já toca dentro da sua orelha e você ouve música ou podcasts no supermercado sem precisar de fones. O melhor de tudo é chegar ao caixa e ao ouvir a voz cristalina do funcionário mal-humorado perguntar "crédito ou débito?", franzir o cenho e responder "O quê?" —só pra vê-lo irritado.

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