Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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O velho dito 'não julgue o livro pela capa' foi posto do avesso

Em vez de serem avaliadas pelas qualidades estéticas, as obras passam a ser referendadas pelas origens ou características de seus autores

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"Ficção Americana" é um filme da Amazon Prime, escrito e dirigido por Cord Jefferson, sobre o qual darei spoilers a torto e a direito. Estão avisados.

Thelonious Ellison é um romancista norte-americano, negro e extremamente talentoso, que está patinando na carreira. Os editores brancos e o público, em geral, não acham seus livros "negros o suficiente". Por "negros o suficiente" eles entendem histórias sobre existências marginais em meio à violência, ao tráfico, ao desespero, narradas com muita gíria e palavrão. Fosse no Brasil, incluiriam também samba, futebol, capoeira, funk, sensualidade e malemolência.

Com o saco na lua, Thelonious resolve fazer uma pegadinha. Escreve um livro ultraclichê, gabaritando todos os lugares-comuns da "negritude" (as aspas são muito importantes neste texto), usando um patuá afro-americano de gangsta-rapper, com calculados erros de ortografia, tipo "yo-yo-madah-fuckah!". Acredita que, ao lerem tal caricatura da "literatura negra", os editores sentirão vergonha de suas demandas. Para sua surpresa, o livro é adorado, publicado e se torna um best-seller –ainda mais depois de seu agente inventar que Thelonious, sob um pseudônimo, é um perigoso foragido da Justiça.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 10 de Março de 2024, mostra o desenho de uma xícara de chá de porcelana com pessoas boiando em seu interior
Adams Carvalho

A história tragicômica revela muito sobre certo lugar que as questões identitárias ganharam no mercado e na cultura. Mascarada pela virtuosa desculpa de dar voz aos oprimidos e revelar as injustiças sociais, a desgraça se torna um produto "premium", "gourmet". Milionários dos Hamptons (a praia de Laranjeiras, a Quinta da Baroneza da costa leste americana) vão levar o livro pra piscina, exibindo a seus pares o hype de estar "up-to-date" com as mazelas deste mundo.

Em tempos de narcisismo instagramático, o velho dito "não julgue o livro pela capa" foi posto do avesso. A verdade agora é "julgue o livro pela contracapa". No lugar de serem avaliadas pelas qualidades estéticas, as obras passam a ser referendadas pelas origens ou características de seus autores. No meio de coisas boas que afloram quando a branquitude se torna um pouco mais porosa a quem não é dos seus, livros, músicas ou filmes medíocres são aplaudidos e premiados como obras-primas por virem de pessoas com histórias de vida difíceis. Ao tentar fugir do racismo/machismo/homofobia, tal atitude acaba por reforçá-los. Afinal, tão discriminatório como destratar o outro é tratá-lo com uma condescendência paternalista.

"Ficção Americana" revela como, em vez de fazer do mundo um lugar mais justo e seguro para os oprimidos, preferimos simplesmente expiar a culpa aplaudindo obras produzidas por eles. Vale mais –e dá bem menos trabalho— pra quem tá por cima da carne-seca comentar num jantar que assistiu a uma performance "fortíssima", "urgente", "potente" e "visceral" de uma artista trans ou indígena ou negra do que mover uma palha pra combater o assassinato de travestis ou mitigar a tragédia yanomami. "O que eu fiz em relação à "Operação Escudo", em que a PM paulista só matou menos gente do que no massacre do Carandiru?" "Ah, eu li Frantz Fanon."

Esta operação de lavagem da culpa faz tão mal ao mundo quanto à arte. Agride, principalmente, os que parecem se beneficiar dela, pois os artistas aplaudidos pela culpa são privados de críticas sinceras, impedidos, assim, de se aprimorar no livre debate de ideias. Trocamos o mito da "democracia racial" pela falácia da "democracia cultural".

Pra piorar: a direita, que não vê a realidade pelas lentes da culpa e sim tentando colocar a culpa nos outros, percebe a impostura, grita "o rei tá nu!" e faz com que a luta de séculos por igualdade, justiça e liberdade volte dez casas no tabuleiro. Mentira não é ferramenta pra justiça social. É só mentira.

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