Eu não tenho resposta, só muitas perguntas e um grande incômodo: como fazemos para que a liberdade de expressão não seja um habeas corpus para a liberdade de opressão? Antes de ir às perguntas, vamos hierarquizar os problemas: a grande chaga nacional, a vergonha que nos impede de ser uma nação minimamente justa, não é a censura ou a falta de liberdade dos comediantes de stand-up, é o racismo. Os pretos ganham menos, têm menos instrução e muito mais chances de serem assassinados pela polícia. Me espanta, portanto, que tantos tenham vindo a público defender a liberdade de expressão do humorista processado por piadas racistas e tão poucos para condenar a piada.
Lygia Maria, em sua última coluna aqui na Folha, minimizando a importância das falas infames, afirmou: "Alega-se que piadas geram crimes ("piadas matam"). Mas isso é deveras abstrato para servir como tipificação. Qual mulher foi assassinada por uma piada machista?". Diretamente, nenhuma, é óbvio. Seria como perguntar "Qual versículo do novo testamento fez dos EUA uma potência mundial?". Nenhum, isoladamente. No entanto a obra "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", do Max Weber, que aponta as raízes evangélicas da pujança norte-americana, continua de pé.
Ideias moldam a sociedade. É o desprezo pela mulher ou pelo negro e seu rebaixamento a objeto que abrem a porta para o abuso, a agressão, o assassinato. A torcida que chama Vini Jr. de macaco faz a cama pras chacinas da PM. Piada minimizando a escravidão, também.
Lygia Maria, assim como Hélio Schwartsman, acredita que no debate público existe um certo darwinismo cultural, capaz de calar as imbecilidades e premiar a virtude. Tal pensamento mágico não sobrevive a uma volta no quarteirão. (Aos 4, minha filha me perguntou: "papai, porque todos os mendigos são negros?"). Em primeiro lugar, não há "debate" se a competição é desequilibrada. O racismo tem ao seu lado a elite brasileira, boa parte da mídia, a PM, 500 anos de história e cultura e, nos últimos tempos, os algoritmos das redes sociais, bombando as ideias mais violentas por gerarem cliques. O grito do antirracismo ecoa das galés. Os racistas cantam num trio elétrico.
É através da lei que combatemos piadas opressoras? Sinceramente, não sei. Quem e como se define o que é opressor e o que é libertário? Racismo é crime, assim como nazismo. Ok. Mas e se faço uma piada que envolve maconha, estou fazendo apologia do crime? Aborto também é crime, no Brasil. Se faço uma piada a favor da descriminalização, devo ser condenado?
Em seu último stand-up, na Netflix, Chris Rock diz que é a favor do aborto não só até a décima segunda semana, mas até os quatro anos —ou o primeiro boletim. A qualquer momento, caso seu filho se comporte mal, você pode ameaçar "olha que te levo pra clínica!".
É uma piada que estimula o infanticídio? Muito pelo contrário. A proposta é claramente absurda. A piada libera a agressividade que todo pai e mãe sentem, por trás do amor, em relação aos filhos. A raiva pela trabalheira que eles dão é extravasada na gargalhada, e podemos então cuidar das crianças com mais leveza e carinho. Bem diferente é uma piada minimizando a escravidão, coisa que muita gente faz a sério. Nosso ex-presidente o fez no Roda Viva durante a campanha de 2018 —e foi eleito. É preciso combater o racismo e lutar pela liberdade de expressão. Necessariamente nessa ordem.
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