Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Mudança de formato da Folha me lembrou do barulho infernal que meu avô passou a ouvir ao colocar aparelhos auditivos

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Meu avô não era muito aberto para o lado, digamos assim, mais poético da vida. Engenheiro, projetava locomotivas. Depois de aposentado, montou no sítio uma marcenaria onde fabricava mesas e cadeiras que traziam em solidez o que careciam em elegância. Não é verdade que em caso de uma hecatombe nuclear só as baratas sobreviveriam. Os móveis do meu avó seguiriam de pé, ad infinitum, sobre as cinzas do apocalipse.

Durante as últimas décadas de vida, meu avô foi perdendo a audição, até que enfim resolveu dobrar-se às súplicas (berros) familiares e colocar aparelhos auditivos. Da primeira vez que o encontrei com os aparelhos, perguntei quais haviam sido suas impressões ao recuperar a audição. Esperava, ingenuamente, que ele fosse falar algo sobre o cricrilar dos grilos ao crepúsculo, o gorjear das maritacas na mangueira, o murmurar da água sobre as pedras do riacho. "O jornal", me disse ele. "Que que tem o jornal?". "É ensurdecedor! A cada dobrada que você dá é um barulho infernal, braplaploft craflopt tralhalhatrofscri!".

vista de uma mão segurando um jornal
Edição da Folha no formato berliner, adotado desde o domingo (1) - Zanone Fraissat/Folhapress

Lembrei dessa história ao receber pelo correio algumas edições da Folha impressa em seu novo formato. A ideia era que eu lesse o jornal e escrevesse uma crônica com minhas opiniões. O que primeiro me assombrou, assim que abri o envelope, foi constatar que ainda tem gente lendo o jornal impresso. (Faz pelo menos dez anos que as notícias me chegam via celular ou tablet, naquele formato que espelha a edição impressa). O que me assombrou logo em seguida foi constatar que ler no papel é infinitamente melhor do que na tela. Com o jornal aberto em mãos você tem uma visão geral das notícias, como se as sobrevoasse de drone. Ter que ficar abrindo na tela, com o polegar e o indicador, cada coluna de texto, é como fazer faxina numa casa escura utilizando uma lanterna.

Fiquei tão embasbacado com a superioridade do papel sobre a tela que demorei a atentar para a encomenda: comentar o novo formato. A bem da verdade, dada a década que me separa das notícias em celulose, não serei a melhor pessoa a sopesar vantagens e desvantagens da diminuição da Folha —e das folhas. Mas vamos lá.

Comemoro, de forma um tanto cabotina, que a minha coluna, antes a ocupar pouco mais de um quarto da página no Cotidiano, agora toma metade dela. É como se eu tivesse me mudado da laje de um predião para um loft num predinho. A área de texto é rigorosamente a mesma, mas o loft causa melhor impressão às visitas.

Do ponto de vista prático, há melhoras. Ler o jornal na praia, ação outrora com o mesmo grau de dificuldade de montar um cubo mágico numa montanha russa ou tricotar um paletó no Paris-Dakar (de moto), acaba de se tornar algo acessível a qualquer mortal. (Lembro bem de, há muitos anos, sair correndo pela areia atrás de páginas que se espraiavam pra todos os lados). Dois pontos negativos: cachorros terão que melhorar a mira e peixeiros devem abandonar o cherne e a tainha e priorizar a anchova e a sardinha.

A maior diferença do novo formato, no entanto, não é visual, tátil ou prática, mas auditiva. Daqui em diante, a leitura do jornal não trará consigo o famigerado braplaploft craflopt tralhalhatrofscri —esse sim o verdadeiro ruído de comunicação. Não creio que deixará saudade.

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