Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Descrição de chapéu jornalismo

Molecagem à beira do abismo

Precisamos trazer os adultos pro debate

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O legislativo tá comprado. Augusto Aras, alma sebosa, assovia durante o incêndio. O STF manda prender deputado golpista, mas afina pra general. O PIB é majoritariamente fiador do vandalismo miliciano. Nos últimos dois anos, a instituição mais sólida na defesa do Brasil tem sido a imprensa. O jornalismo vem denunciando os crimes do Executivo, informando a população sobre a pandemia e literalmente contando os mortos.

Dentro do jornalismo, a Folha ocupa lugar de destaque. Daqui saíram os furos sobre a Wal do Açaí, a evolução patrimonial da família Bolsonaro, o escândalo da vacina Covaxin, os disparos ilegais de propaganda eleitoral e mentiras pelo WhatsApp (elemento importante na CPI das Fake News). Isso tudo numa crise tremenda, grana curta, equipes reduzidas, sufoco.

Às vezes, contudo, parece que a Folha sente vergonha de estar do lado certo da história e resolve atirar no próprio pé. No dia 24 de maio (data em que batemos 450 mil mortos por Covid-19), o jornal apresentou o empresário Gabriel Kanner como novo colunista. Reli algumas vezes o texto para ver se era aquilo mesmo. O “entusiasta do governo Jair Bolsonaro”, dizia a matéria, iria dedicar-se à “defesa das tradições e da família” –as últimas aspas são do empresário.

Ilustração de uma criança com cabelos curtos lisos vestindo uma regata segurando um estilingue. Ela está mirando e puxando o elástico, sendo que a forquilha está mais perto do corpo dela e o elástico está sendo tensionado para longe do corpo.
Adams Carvalho/Folhapress

Nós sabemos bem o que é a “defesa das tradições e da família” para um “entusiasta do governo Bolsonaro”. É ir pra porta de hospital ou pras redes ameaçar de morte uma menina que busca abortar o fruto de um estupro. É elogiar o MC Reaça. É “Não te estupro porque você não merece”. É “direitos humanos pra humanos direitos”. “Universidade não é para todos.”

Muita gente pensa assim? Pelo menos 20% da população. Os mesmos, imagino, que apoiariam um golpe. Teremos um colunista pró-ditadura, portanto? Se crescer o movimento antivacina, a Folha contratará um representante desses alucinados? O que traz de positivo à arena pública amplificar vozes como estas, além de acariciar os que acreditam na cura gay, na cloroquina, na Terra plana?

Semana passada foi a vez do jornalista Leandro Narloch estrear no jornal. Publicou um desses clichês infantis do sofismo caça-cliques alt-right, minimizando as consequências do aquecimento global. O efeito estufa e seus desencadeamentos nefastos são consenso na comunidade científica mundial. Desdenhar dos alertas sobre os riscos que corremos tachando-os de “vaticínios apocalípticos” é como Bolsonaro chamando a Covid de “gripezinha”. A Folha acha que enriquece o debate ao promover esta cloroquina ambiental?

Há mais de uma década, Obama dava tapinhas no ombro do Lula e dizia que ele era “o cara”. Mundo afora, parecia que o discurso progressista se tornaria hegemônico. Naquele cenário, até compreendo (embora discorde de) trazerem um Pondé para bagunçar “o coro dos contentes” –segundo ele escreveu, foi essa a encomenda do jornal. Se chegássemos a um idílio terreno (nunca estivemos nem perto), certo niilismo de salão com gracinhas grosseiras poderia funcionar como um Tabasco na receita do diário. Não só não chegamos ao idílio terreno como capotamos feio.

A democracia está sob ataque, as florestas ardem, as geleiras derretem e a temperatura sobe. Minimizar o aquecimento global, trollar qualquer ativismo ou ser “entusiasta” de milicianos não é bagunçar “o coro dos contentes”, é abrir o caminho para os que queimam a Amazônia, fazem chacinas nas favelas, matam mulher na porrada e ameaçam com uma ditadura. A situação política, social e ambiental é muito grave. Precisamos trazer os adultos pro debate, não é hora de molecagem.

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