Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Imorrível. Imbrochável. Incomível

Só cabe alguma virtude em ser 'incomível' se houver grande tentação em não o ser

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Não sei se serviu de consolo por nunca ter conquistado a Copa do Mundo, a Bola de Ouro ou a maturidade, mas no fim de 2023 Neymar foi laureado com a medalha dos três "is": "Imorrível. Imbrochável. Incomível". (Considerando-se o outorgante do galardão, seria de bom tom incluírem nele um quarto "i", de "Inelegível". Fica a dica).

Também recebeu a honraria o maior agricultor cisplatino de costeletas desde Carlos Menen, inventor da mesa branca canina e presidente da Argentina, Javier Milei. Outro dia foi a vez do candidato a prefeito de São Paulo, a cosplay de Mario Bros e a Celso Russomano eleitoral, Pablo Marçal. Por fim, semana passada, um dos possíveis futuros presidentes da Câmara, Hugo Motta, teve a oportunidade de ostentar sobre o peito a macholenta (@jaqueconserta, procurem no Instagram) gratificação.

"Imorrível. Imbrochável. Incomível". Seria trágico se não fosse cômico. Aí está, forjado em metal, circuncidado, ou melhor, circundando a imagem do ex-presidente, um dos maiores atos fálicos, quero dizer, atos falhos da falibilíssima masculinidade brasileira, latino-americana, e, pensando no Trump, mundial. Deixemos de lado, por ora, os dois primeiros "is". Concentremo-nos no terceiro: "Incomível".

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 15 de Setembro de 2024, mostra o desenho de um homem, usando quepe e jaqueta de couro, dando uma medalha a outro homem, vestindo camiseta justa e shorts esportivo.
Adams Carvalho

Uma pessoa pode (e deve) sentir orgulho ao dizer que parou de fumar. Havia ali uma compulsão, um vício contra o qual ela lutou. Da mesma forma, o amigo glutão pode bater no peito ao recusar um quindim, afirmando, "estou de dieta". Nos dois exemplos, a disciplina e o autocontrole sobrepujaram o desejo.

Agora: é impossível gabar-se por, digamos, nunca ter ido a Araraquara. A não ser que Araraquara exercesse sobre a pessoa uma atração magnética, a não ser que Araraquara fosse tipo uma Sodoma e Gomorra do interior paulista, a não ser que em Araraquara a gula e a luxúria andassem de mãos dadas, nuas, copulando e vertendo churros de Nutella pelas ventas e KY pelas orelhas, recusar Araraquara não merece qualquer admiração.

A leitora —e, principalmente, o leitor— que me acompanhou até aqui há de convir que, pela mesma lógica, só cabe alguma virtude em ser "incomível" se houver grande tentação em não o ser. Só é digno de levar no pescoço tal insígnia quem, mesmo diante da vontade incessante, dos sussurros insistentes, ao pé do ouvido, da luxúria, dos imperiosos ditames latejantes das regiões austrais do corpo humano, mantém-se casto.

Espera. Poxa vida. Faço aqui uma mea-culpa. Mea maxima culpa. Acabo de perceber que errei ao ver na medalha a ostentação pueril da virilidade. Não tinha compreendido sua sacrossanta profundidade. Não se trata da exaltação da Quinta C, mas da consagração de um monástico sacrifício. Lembro-me de uma das imagens mais psicodélicas do Apocalipse de São João: ímpios sendo aferroados por gafanhotos do tamanho de cavalos até o fim dos tempos.

A sina da confraria dos três "is" é ainda mais nobre e desesperadora, pois desejarão diuturnamente a equina ferroada, mas, fiéis a seus princípios, não poderão recebê-la. Com um priapismo ("imbrocháveis") que só demonstra a potência de suas pulsões reprimidas, vagarão "incomíveis", per secula seculorum, exibindo suas medalhas, estoicos e ascetas, com a imagem do ex-capitão.

Tamanha restrição dos impulsos mais profundos talvez explique por que, de tempos em tempos, os escolhidos sublimem seus desejos reprimidos acariciando fuzis, batendo em mulher, abusando de crianças, atropelando motoboys ou caindo de boca, com vontade, em dulcíssimo fellatio, em latas de leite condensado.

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