Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Becky S. Korich

A terapia do desapego

Aperte excluir sem dó

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tudo começou quando recebi uma mensagem do meu provedor de e-mails me notificando que a assinatura de backup atingiu o limite de espaço de armazenamento. Eu tinha duas opções: adquirir espaço de armazenamento extra (o caminho mais cômodo e natural) ou fazer uma faxina.

Optei pela segunda. Comecei pela "caixa de entrada" e encontrei e-mails de 2009 que até hoje aguardavam leitura ou resposta. Li alguns, me situei na minha história e senti uma certa nostalgia ao me ver no passado. Parei por alguns segundos, quase fui fisgada por um apego-ansioso, mas segui adiante. Venci a voz interna sabotadora dizendo "não faça isso, você pode precisar destas informações algum dia", selecionei um bloco de e-mails e apertei "excluir" com vontade.

Depois dos trinta primeiros e-mails sacrificados, ficou mais fácil: fui higienizando a caixa de entrada, sem remorsos, como quem se livra de células mortas que se prendem à pele.

Guarda-roupa organizado
Guarda-roupa de pessoa que usou o método de organização da japonesa Marie Kondo - Bruno Santos - 22.jan.2019/Folhapress

Em seguida, sem pensar duas vezes, mandei para a "lixeira" todos os milhares de "itens excluídos", "itens enviados" e todo o "lixo eletrônico". Cada vez que clicava "excluir", eu era tomada por uma sensação inexplicável de alívio e felicidade. Até o computador estranhou, ficou mais lento, como que me avisando que aquela decisão era irreversível.

Eliminei as pastas inúteis, como "pendências", que eu não lia há cinco anos, "contratos", todos eles expirados, "orçamentos", de empresas que nem sei se existem mais, "fotos", com cópias das cópias das melhores fotos, só para garantir. A voz interna, embora menos potente, voltava, "e se você precisar dos comprovantes algum dia?", "e se todas as suas fotos sumirem da nuvem de repente?". Mas fui impelida por uma força irresponsável e deletei pastas, subpastas e ramificações, sem conferir o conteúdo. Senti o quarteto endorfina-dopamina-serotonina-ocitocina fazerem a festa dentro de mim, comemorando o detox.

Extasiada pelo efeito que a limpeza me causou, aproveitei o embalo para desafogar também o meu armário. Instituí uma regra para facilitar a seleção: se eu não usei no inverno passado, vai direto para a caixa de saída. Despi as roupas de emoção, e as enxerguei com outros olhos. "Essa vai, essa também, essa fica".

Quando aparecia um "não sei", a regra era: na dúvida, item excluído. Não foi um rompante insano, pelo contrário, insano é guardar roupas para eventualmente usar dependendo do humor do dia, enquanto para um morador de rua do quarteirão de casa, um casaco —tanto faz a cor e o modelo— pode garantir seu inverno. A caixa ficou cheia e meu armário, apesar de mais vazio do que antes, parecia também mais cheio, como se tivesse acontecido o milagre da multiplicação.

Depois foi a vez da mesa de trabalho. Fui direto à pilha de papéis encalhados, que reduzi pela metade. Depois eliminei as canetas duplicadas, lápis sem pontas, matérias antigas de jornais, certificados de garantia vencidos. Descolei os vários posts-its com cores vivas desbotadas que estavam espalhados na tela do meu computador, onde tinham ideias escritas. Eliminei a maioria porque as anotações já não faziam mais sentido, tinham se desbotado junto com os posts-its. Não sei quantas ideias eu deixei escapar por não ter aproveitado na hora certa, justamente pelo excesso delas.

Não fui movida por nenhum ato de generosidade, ela foi chegando espontaneamente, como um efeito colateral. Não me inspirei em nenhum método de desapego dos gurus do minimalismo e do anticonsumo, não entoei o mantra de que ter menos bens traz mais felicidade, nem fiz rituais de despedida. Tampouco acredito que passei a viver uma nova vida, de mais desapego e organização, coisa que, aliás, não funcionou nem para Marie Kondo, que hoje se diz desorganizada.

Fui movida apenas pela sensação de felicidade que se sente ao se desopilar, misturada à satisfação de poder ajudar pessoas que não tiveram a sorte nem a oportunidade de saber o que é ter mais do que precisa.

Com esse espaço aberto, acumulei algumas promessas para me manter mais enxuta que, tenho certeza, nem todas serão cumpridas. Guardei o assunto para tratar na próxima sessão de terapia, isso se até lá eu não tiver me desapegado da ideia.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.