Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

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Becky S. Korich

Glamorizar o passado é se deixar enganar

Acreditamos no que queremos que a memória nos conte

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Prefiro a caneta ao teclado —apesar da minha letra, que às vezes nem eu entendo—, o papel à tela, o livro físico ao digital. Não é saudosismo e muito menos uma vilanização dos avanços tecnológicos, que ao mesmo tempo são uma bênção e uma maldição. Não glamorizo o passado como sendo melhor: o melhor vive na nossa imaginação e nas lembranças que permitimos adulterar. Acreditamos no que queremos que a memória nos conte.

Faço parte da geração X, o que significa que tive o privilégio de conhecer da Olivetti ao copy-paste do computador, da Telefunken com botões à TV HDR com controle remoto por voz, do Merthiolate que ardia até a alma ao Merthiolate que faz cócegas, do Neutrox à Kérastase, da agulha na vitrola ao Spotify, do Maverick ao Tesla, da Barsa ao Google. Celebrei com encantamento e valorizei cada vitória da evolução. Hoje a sensação é que tudo vem pronto, que o mundo não existiria sem ter o que temos.

Fita cassete está sobre superfície branca
Fita cassete - Marcelo Justo/Folhapress

Vivi numa época que não existia intolerância a glúten, fotografia se revelava, Crush era um refrigerante de laranja, os Jetsons eram uma alegoria, Monark era marca de bicicleta, plataforma era só nos sapatos, algoritmo era matéria de matemática, K7 era fita para gravar músicas e liberdade era uma calça velha azul e desbotada.

Escrevíamos cartões-postais, postar significava ir ao correio. Tínhamos na mesma semana o Jô às 23h30, TV pirata às terças-feiras, Chico City às quintas. Os bronzeadores reluziam na nossa pele, os pais não se metiam nas regras das escolas, os aviões tinham cinzeiros. Tempos da Telesp, do telefone fixo, do cadeado no telefone fixo, do telefone com sete dígitos, das fichas DDD.

Tomávamos Yakult, não pelos probióticos, mas porque era gostoso. Nos deliciávamos com Farinha Láctea e não engordávamos, porque não pensávamos nisso. Fumávamos chocolate e canetinha Silvapen sonhando em ficar adultos para poder fumar um Marlboro ou um Hollywood que, na primeira tragada, nos transformaria em velejadores e cavalgadores lindos e poderosos.

Não antecipei o meu primeiro sutiã, mas nunca me esqueci dele. O frio chegava à nossa porta, mas não adiantava bater, as Pernambucanas não o deixava entrar. Se não era para a Mesbla, era para o Mappin que corríamos para aproveitar a liquidação. Todos preferíamos lanches Mirabel (o verde era o melhor) que levávamos para a escola na lancheira depois de um sono bom e de escovar os dentinhos. Nos engasgávamos com balas Soft (que eram hard) e cultivávamos cáries nos dentes com caramelos que grudavam neles. Só se salvava do motorzinho do dentista quem sentia o gosto da vitória usando Kolynos —na escova dura, achávamos que quanto mais dura, mais limpava.

Eu sonhava em ser Sonia Braga e usar meias lurex com sandálias, mas ainda não tinha pés para isso. Achava o Zico lindo, mas ainda não tinha idade para isso. Hoje sonho com o Louis Garrel, mas não tenho mais idade para isso.

Mantenho o melhor de antes —que gravei no meu HD apertando o rec e o play— e aproveito o melhor de hoje. O que posso escolher escolho, dentro de uma lista nada coerente entre o antigo e o novo, com a vantagem de carregar comigo o passado. A nossa história é um caminho irreversível, saber viver o presente é o melhor dos mundos.

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