Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

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Descrição de chapéu África Portugal terrorismo

'Preto na cor... Branco no coração'

Quando o racismo vem das entranhas

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Uma conta verificada no X, com o nome de usuária Esra Erdogan, que supostamente seria filha do presidente turco Recep Erdogan, na intenção de enaltecer presidente sul-africano Cyril Ramaphosa pela iniciativa de levar Israel à Corte Internacional de Justiça, cometeu um ato falho vergonhoso e gravíssimo.

Em seu tuíte, publicado sábado (13) e com mais de 1,7 milhão de visualizações, Esra Erdogan, que se intitula uma "ativista de direitos", se referiu a Ramaphosa como: "Preto na cor... Branco no coração". Ao lado do "elogio" ao líder sul-africano, um emoji da bandeira sul-africana e um de coração... branco.

O tuíte foi objeto de críticas como sendo um manifesto de "racismo explícito e verbal" e uma "condenação da negritude", entre outras. Um dos inconformados escreveu: "Vergonhoso. O que é pior que a ignorância e o erro é a persistência e a perseverança do racismo, que decorre da arrogância e da condescendência. Você deveria ter vergonha de si mesma e deletar seu tuíte".

Cyril Ramaphosa, presidente da África do Sul - Sumaya Hisham - 11.mar.2023/Reuters

Outro comentário, escrito pela conta Árabe Contra o Antissemitismo, respondeu: "Ele é 'negro, mas tem bom coração por dentro'? Que tipo de linguagem racista nojenta é essa? Características, valores e comportamentos individuais não são determinados pela cor da pele; você é racista".

Ato falho, por definição, reflete o que habita nas entranhas do inconsciente: nenhum lapso desse tipo acontece acidentalmente. Mas Esra Erdogan, pura e ingênua como o coração alvo que enfeitou seu tuíte, não entendeu o porquê de tantas críticas: "O que há de errado com isso?"; "Qual é o problema?", respondeu ela. Faz sentido! Para quem o racismo é natural, realmente não há nada de errado na sua declaração.

Essa não foi a primeira vez que é atribuída a uma filha do presidente turco uma declaração tão temerária. Em maio de 2023, durante as eleições na Turquia, uma provocação agitou a sua vizinha cristã-ortodoxa Grécia, com o tuíte: "Em alguns minutos, o crescente islâmico quebrará um século da cruz ocidental".

Questiona-se se a conta pertence realmente à filha do presidente da Turquia (ou seria um perfil falso que se faz passar por um membro da família Erdogan ou até mesmo uma conta troll para semear controvérsias). Seja como for, a circulação da infeliz publicação nas redes sociais causou um grande impacto, levando as autoridades turcas a rejeitarem publicamente a conta, permanecendo, porém, alheias ao conteúdo racista: focaram na pulga (para se defender) e não no cachorro (para tratar da questão fundamental). O tuíte foi apagado, o racismo, não.

A Turquia, que endossou a denúncia de "genocídio" pela África do Sul contra Israel, é um país em que a xenofobia e a discriminação (racial, étnica, de gênero e religiosa) estão presentes. Um país em que o próprio presidente declara publicamente que mulheres sem filhos são "deficientes e incompletas"; que acusa Israel de ser "o país mais fascista e racista do mundo" e faz questão de ignorar que 55% da população de Israel seja proveniente do norte da África, península Ibérica e Oriente Médio. É esse o eixo (de países que não consideram o Hamas uma organização terrorista) a que o Brasil infelizmente se alinhou ao apoiar a denúncia contra Israel: ditaduras, teocracias e violadores de direitos humanos.

Martin Luther King faria hoje 95 anos. Em seu memorável discurso "Eu tenho um sonho", declamado em 1963, ele ressalta que, cem anos depois da Proclamação da Emancipação, o negro ainda não era livre: "Cem anos mais tarde, a vida do negro está ainda infelizmente dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação". Meio século depois desse discurso, o racismo ainda espanta, o sonho de Luther King ainda não prevaleceu ao pesadelo da discriminação.

Na novela "Roque Santeiro" (1985), Milton Gonçalves, no papel do promotor público Lourival Prata, quando chega a Asa Branca para investigar os crimes de corrupção na cidade, mantém um diálogo com Sinhozinho Malta (Lima Duarte) digno do "ato falho racista":

- Quando o senhor chegou aqui, eu logo pensei: esse é um negro de alma branca.

- Sinhozinho Malta, eu posso garantir que a minha alma é tão negra quanto a minha pele.

Isso era para ficar na ficção. Mas existem realidades piores do que a ficção.

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