Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

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Becky S. Korich

A ditadura do moralismo

Dividir o mundo entre santos e canalhas combina com novelas mexicanas, não com a vida real

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Sejamos honestos, ninguém é totalmente honesto consigo mesmo. É humanamente insuportável lidarmos com a verdade crua sobre quem somos e enfrentar nossas inconsistências sem nenhum anestésico emocional. A natureza humana é habilidosa em inventar virtudes morais e especialista em encontrar justificativas para nossas derrapadas morais.

Hoje esse mecanismo ganhou outros contornos. Não existe nenhuma conversa em que a moralidade não domine. Vivemos uma crise de hipocrisia; quem não compartilha das mesmas crenças, é automaticamente considerado imoral —às vezes até é.

Homem agressivo de roupa preta grita, refletindo outro, isolado, que usa branco e tapa os ouvidos
golubovy - stock.adobe.com

O mundo está cheio de almas que se julgam puras e bem-intencionadas e de pessoas narcísicas e inseguras que precisam exibir e gritar suas virtudes morais, nem que seja para se redimir de seus pecados inconfessos.

Eles se definem por não ser o que o outro é, sem se preocupar com o que são: é nesse "não ser" que se baseia sua identidade. Parecer é mais importante do que ser, ser bem-visto é mais importante do que ver bem.

Dizer que estamos polarizados é chover no molhado. A bipartição foi longe, extrapolou a política, invadiu o terreno ético e se tornou uma questão passional.

Em diferentes doses, todos nós estamos condicionados a ter uma reação emocional quando somos contestados em nossas crenças. O problema acontece quando as razões usadas para endossar as paixões valem mais do que o interesse pela verdade.

O maniqueísmo que divide o mundo entre santos e canalhas combina com novelas mexicanas, não com a vida real, em que os valores morais não são absolutos. O "moralismo moderno" escolhe uma só perspectiva (eu jurei que não usaria a palavra "narrativa") para depositar todas as fichas.

Nenhum valor é estático. Muito menos os valores morais, que variam de acordo com a época e a cultura. Não dá para enclausurá-los dentro de um pacote completo, hermético a vácuo e impenetrável. Não se trata de tudo ou nada, do certo ou errado. Desprezar a complexidade humana e social é aceitar o vácuo existencial e restringir a liberdade de pensamento.

Com tanto patrulhamento, o mundo está mais chato e mais achatado. As pessoas estão ressentidas e mal-humoradas. Não sobra espaço para o humor, porque, por mais inofensivo que seja, ele só acontece com a violação de alguma norma social.

Se antes ser careta significava ser tradicional no sentido de não conseguir lidar com o diferente ou o novo, os caretas da modernidade são os tiranos do moralismo que vestem a máscara de libertários para controlar, julgar e oprimir o diferente. É praticamente um dever demonizar os outros.

Jonathan Haidt, psicólogo, explica em seu livro "The Righteous Mind: Why Good People are Divided by Politics and Religion" (A Mente Justa: Porque as Boas Pessoas se Dividem por Política e Religião): "Se você pensa que o raciocínio moral é algo que fazemos para descobrir a verdade, você ficará constantemente frustrado ao ver como as pessoas se tornam tolas, tendenciosas e ilógicas quando discordam de você. Mas se pensarmos no raciocínio moral como uma habilidade que nós, seres humanos, desenvolvemos para promover as nossas agendas sociais —para justificar as nossas próprias ações e para defender as equipes às quais pertencemos— então as coisas farão muito mais sentido".

Essa percepção é antiga. Em 1739 o filósofo escocês David Hume, em seu "Tratado da Natureza Humana", desafiou o racionalismo ao defender que os sentimentos são determinantes para a compreensão da moral porque não fomos projetados para ouvir a razão: "É impossível que a razão e a paixão possam se opor mutuamente ou disputar o controle da vontade e das ações. Assim que percebemos a falsidade de uma suposição ou a influência de certos meios, nossas paixões cedem a nossa razão sem nenhuma oposição".

Silenciar a ideia do outro tem o preço de silenciar a própria voz: nada mais imoral do que isso.
O mundo está moralista demais, mas não está com essa moral toda.

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