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Divisão política transbordou à vida real e se calcificou, diz autor de livro sobre polarização

Felipe Nunes vê persistência no 'comportamento de torcida' de apoiadores de Lula e Bolsonaro, com impactos em famílias e empresas

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São Paulo

O cientista político Felipe Nunes usa uma comparação bem brasileira para descrever a nova realidade política do país. Para ele, é como se as torcidas do clássico Flamengo x Fluminense estendessem a rivalidade para fora do estádio, num enfrentamento ininterrupto e definidor do comportamento de grupo.

Nunes, também diretor da empresa de consultoria e pesquisas Quaest, está lançando com o jornalista Thomas Traumann o livro "Biografia do Abismo", cujo subtítulo traça um cenário realista e sombrio: "Como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil".

O cientista político e professor Felipe Nunes, coautor do livro 'Biografia do Abismo' - Jardiel Carvalho/Folhapress

Passado um ano da eleição entre Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL), decidida com a menor diferença entre candidatos à Presidência desde a redemocratização, os autores citam dados de pesquisas, revisitam o noticiário e recorrem a estudos para explicar o quadro de divisão social jamais visto antes.

"Os dois grupos vão ter que topar o desafio de baixar as armas ao mesmo tempo e tentar viver de uma maneira menos individualizada, para que a gente saia dessa calcificação", diz Nunes à Folha, citando o termo usado no livro para definir o estágio de polarização enraizada existente no Brasil.

O cientista, que também é professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), afirma que a obra tem caráter empírico e propõe um exercício de sociologia política, com visão crítica sobre esquerda e direita, numa discussão sobre causas, impactos e possíveis saídas para a questão.

Que abismo é esse que está citado no título do livro?
É a situação política em que a gente se meteu desde 2018 e que foi nos afastando tanto do outro lado e nos tornando tão intolerantes a ponto de gerar um abismo. São dois grupos com preferências e visões de mundo diferentes e reconciliá-los nos parece uma tarefa muito desafiadora e que vai levar tempo.

Em que momento o sr. percebeu o fenômeno da polarização social, que ultrapassa o ambiente eleitoral?
Quando comecei a olhar para o cenário internacional e ver que tendências lá de fora, principalmente dos Estados Unidos, estavam sendo reproduzidas aqui.

O principal alerta foi quando, durante o processo eleitoral, as pessoas começaram a responder nas pesquisas que não suportavam mais conviver com e entender o outro. Fui percebendo que o flá-flu estava se dando não mais só durante a partida, mas foi para a rua, para fora do estádio.

Quando efetivamente esse processo começou?
Notei que a polarização deixou de ser partidária e política para ser afetiva no processo eleitoral de 2018, marcado por uma ideia antissistema. A palavra polarização não dá mais conta de descrever o que vivemos. Por isso, adotamos o termo calcificação, que é esse processo de enrijecimento dos lados.

Outro termo abordado no livro é o de bolhificação da política, ou seja, a organização por bolhas. Esse processo foi o que desembocou na calcificação?
Não haveria calcificação das preferências políticas, não haveria esse comportamento de torcedor no processo político que depois transbordou para a vida em sociedade, se não fossem as redes sociais. Elas mudaram tudo, porque permitiram à sociedade buscar cada vez mais se informar sobre aquilo que lhe interessa, mas também confirma seus preconceitos, suas atitudes, suas ideias.

É um processo que nos coloca dentro de bolhas que confirmam nossos vieses e reforçam nosso hedonismo, nossa vontade de estar certo, nossa vontade de ter razão no debate o tempo todo.

Concorda com a corrente que aponta a nova nova direita mundial, inclusive pelo emprego das redes sociais, como responsável pelo processo de radicalização em vários países?
A extrema direita é diretamente responsável pela mudança da dimensão do conflito político. Antes da entrada dela, discutíamos temas como o papel do Estado, ser a favor ou contra privatização. A extrema direita passa a fazer uma disputa de visões de mundo e temas de foro privado, gerando um apartheid.

Os srs. colocam no livro que tanto Lula quanto Bolsonaro organizaram suas campanhas estimulando a divisão da sociedade. Qual é a parcela de culpa do campo da esquerda na calcificação?
Se, por um lado, a direita é responsável por trazer valores e costumes para o debate, a esquerda é responsável por intensificar a questão identitária como se ela fosse o debate central na sociedade. Com isso, a direita se vê no direito de fazer a contraposição em torno das mesmas pautas.

Esse processo é reversível?
Precisamos ser otimistas de que há saída. Mas a resposta complexa é que, antes de pensar em uma alternativa e uma reversão, vamos ter que aprender a conviver com isso. Enquanto agirmos ignorando que a polarização veio para ficar, vamos continuar estimulando-a mesmo sem perceber.

Consegue apontar algum caminho prático? Os lados vão ter que abrir mão das suas convicções?
Do ponto de vista institucional, um passo importante é combater a desinformação e a ideia de querer vencer o debate público a qualquer custo.

Individualmente, a saída é perceber que a divergência é natural numa sociedade plural e que o adversário não é inimigo. O denominador comum deve ser o respeito às regras do jogo, ou seja, não permitir que o 8 de janeiro aconteça novamente ou seja visto como algo banal, normal, possível.

A sua defesa de que a divergência é saudável na democracia se assemelha a falas de Lula desde a vitória, mas o presidente também faz provocações ao outro lado. Como avalia o papel dele?
A escolha do slogan do governo, "União e Reconstrução", e a postura de unidade institucional construída depois do 8 de janeiro me pareceram adequadas para a realidade que vivemos.

Mas, no debate público, o nós contra eles sempre foi uma tônica da campanha petista. O que diferencia os lados é que um deles tenta aniquilar, destruir, acabar com o outro. No caso da esquerda, embora a visão seja irreconciliável [com a direita], ela joga dentro das quatro linhas, faz o jogo democrático.

Não acho que o governo vá deixar de ser provocativo ou abrir mão de fazer o debate político-ideológico, mas estabelecer que o jogo respeite as regras democráticas é a maior contribuição que ele pode dar neste momento de calcificação.

O livro aponta o ambiente escolar como um símbolo hoje da calcificação, como a continuação dos embates da arena política. Em que outros espaços esse fenômeno tem acontecido?
No esporte, dentro das famílias e sobretudo no mundo corporativo. No mundo empresarial é onde isso vai ficar cada vez mais impactante, com empresas prejudicadas em termos comerciais e de reputação.

O caso Bis evidenciou que o processo de distanciamento não se encerrou em outubro de 2022. A escolha de um influenciador popular como Felipe Neto para a publicidade [do chocolate] passou a ser vista como uma ameaça, dada sua posição política [declarou voto em Lula]. No Brasil pré-calcificação, isso era inimaginável.

Como esse ambiente vai afetar as eleições municipais de 2024?
O ano que vem será de teste para o bolsonarismo, com Bolsonaro fora do poder. Na nossa avaliação, o bolsonarismo se tornou uma identidade e independe do líder para sobreviver. As eleições nas grandes cidades devem sofrer uma influência da disputa calcificada.

Já as cidades menores devem ter eleições muito mais sobre problemas de gestão e capacidade das lideranças locais de entregarem resultados e menos movidas por debate ideológico.

Sobre a eleição de 2026, o livro afirma que é ingênuo supor uma normalidade política vigorando até lá. Por que já é possível fazer esse prognóstico?
O livro apresenta dados consistentes sobre o padrão de voto no PT e anti-PT. Comparando os pares de eleições [municipais e gerais] desde os anos 1990, a cada ciclo aumenta o grau de correlação dos votos. Independentemente dos candidatos de cada polo, o comportamento do eleitor está mais estável e previsível.

Existe um risco de, no limite, o Brasil ter uma guerra civil?
Não, não é para tanto, mas é um processo contínuo e gradual. Há mais pessoas que prefeririam sair do país ou que reprovariam o casamento de um filho com alguém do campo político oposto.

O livro traz a avaliação de que a convivência entre diferentes é o principal desafio dos próximos anos. Que saídas o sr. propõe?
O desafio é caminhar para o fortalecimento das instituições representat ivas, para tentar fazer com que a disputa volte para o campo da política. Viver dessa maneira foi uma escolha coletiva, e a solução para reconstruir essas pontes também terá que ser coletiva. Os dois grupos vão ter que topar o desafio de baixar as armas ao mesmo tempo e tentar viver de uma maneira menos individualizada.

Biografia do Abismo – Como a Polarização Divide Famílias, Desafia Empresas e Compromete o Futuro do Brasil

  • Preço R$ 54,90 (240 págs.); R$ 37,90 (ebook)
  • Autoria Felipe Nunes e Thomas Traumann
  • Editora HarperCollins

RAIO-X | FELIPE NUNES DOS SANTOS, 40

Professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), é doutor em ciência política e mestre em estatística pela Universidade da Califórnia, com estudos sobre desinformação, redes e eleições. Também é sócio-fundador da Quaest, empresa de pesquisas de opinião e consultoria. Escreveu o livro "Biografia do Abismo" (2023) com o jornalista Thomas Traumann, ex-ministro da Comunicação Social (governo Dilma).

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