Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

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Becky S. Korich

'Tanto menti, que comecei a mentir minha própria mentira'

Somos frágeis demais para suportar a verdade bruta incessante diante de nós

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A grande mentira do 1º de abril é o que a própria data sugere, como se em todos os outros dias do ano fôssemos verdadeiros e só neste dia tivéssemos permissão para mentir. Que tal sermos realistas, inverter essa ordem e usar o Dia da Mentira para descobrir se conseguimos passar 24 horas sem mentir?

Fletcher Reede, interpretado por Jim Carrey no filme "O Mentiroso", vive esse desafio quando seu filho, no dia de seu aniversário, pede um presente: que o pai não minta por um dia inteiro. Advogado habituado a mentir, na profissão e na vida, Fletcher vive um dia às avessas, suando a camisa e arriscando o próprio desempenho profissional para se manter fiel ao pedido do filho.

Ilustração mostra homem segurando uma máscara
Nuthawut - stock.adobe.com

Todo mundo mente –sobre relacionamentos, sexo, preconceitos, política, filhos. Mentimos nas redes, para amigos, chefes, empregados, cônjuges, pais, filhos. Mentimos para terapeutas. Mentimos para nós mesmos.

Somos frágeis demais para suportar a verdade bruta incessante diante de nós. Assim como o medo nos protege dos perigos da vida, a mentira nos defende das nossas vergonhas, vaidades, temores e das nossas incoerências e conflitos internos.

A própria "narrativa" que fazemos de nós mesmos não aceita o compromisso de uma única verdade. Nossas mentes criam histórias plausíveis, nossos padrões de crenças assumem o controle e, assim, contamos a nós mesmos histórias convincentes, baratas e muitas vezes adulteradas. Tais histórias, fragmentos das nossas fantasias, são um espaço criado de intimidade e privacidade que tanto precisamos preservar.

Não é exagero, portanto, afirmar que a mentira é parte inalienável da nossa verdade, porque somos todos contadores de histórias e nos tornamos as próprias histórias que contamos. "Cada um de nós constrói e vive uma narrativa", escreveu o neurologista britânico Oliver Sacks.

Congelar uma única verdade nos condena à inautenticidade, pois ela é continuamente desenhada de acordo com o que vivemos. O filósofo americano Daniel Dennett descreve isso com muita clareza: "somos todos romancistas virtuosos, que se encontram envolvidos em todo tipo de comportamento… e sempre colocamos os ‘melhores rostos’ que pudermos".

O imaginário inventa, o desejo adultera, as telas acolhem. Nas redes exibimos nossos "melhores rostos", que se revelam mais fiéis do que o espelho. Acabamos sendo o que sobra do que escondemos, e nos fixamos a esses personagens que criamos nós mesmos. Perigo à vista.

Isso nunca me aconteceu antes. Eu paro quando quiser. O problema não é você, sou eu. Semana que vem certeza a gente marca. Segunda-feira eu começo. A bateria acabou. Foi o trânsito. Foi o meu filho. Foi a chuva. Que estranho, não apareceu notificação da sua mensagem. Estou com dor de cabeça. Pague um e leve dois. Tudo por R$ 1 (e outros preços). Comida integral não engorda. Bom te ver. Estou em reunião. Eu não vivo sem você. Meu maior defeito é ser muito sincero.

São exemplos de, como diria Nelson Rodrigues, "mentiras misericordiosas". É inegável que a vida em sociedade sem uma certa dose de mentira seria insuportável. A mentira lubrifica nossas interações sociais e faz parte do convívio cotidiano, é como um código de conduta velado.

Compreendendo tudo isso, fica mais fácil driblar os atalhos que as mentiras nos seduzem a trilhar. Mentir não pode ser a única opção de sobrevivência. Para "mentir com moderação", temos que escolher as mentiras e, principalmente, eleger as nossas verdades inegociáveis; temos que saber olhar para o nosso reflexo sem adulterá-lo e olhar para o outro com a coragem de ser o que somos —hoje.

"Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser tão precavida; porque depois nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto menti que comecei a mentir até minha própria mentira. E isso —já atordoada eu sentia— isso era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta." – Clarice Lispector

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