Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Ué, não convidou pra subir?

Vendo Armand com martelo nas mãos, Roque entende que vão começar por seu apartamento

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Roque conheceu um pessoal bacana outro dia no bar. Os irmãos Alfred e Armand. Gente de bem, que diz o que pensa, sem frescura, não fica só no anonimato da internet, não, porque isso qualquer cuzão faz. Alfred e Armand falam ao vivo, em pessoa, sem medo e sem censura, pra quem quiser ouvir.

Roque diz que sofreu o diabo nos últimos anos. Não gosta de mimimi de gay, negro, feminista. Ninguém é obrigado, né? Roque perdeu o emprego pelas coisas que pensa. Acredita em meritocracia, não nessa merda de educação com dinheiro do contribuinte. Mérito não tem nada a ver com educação. Foi maneiro poder dividir isso com os novos amigos de bar. Roque simpatizou com eles e convidou os dois pra subir e tomar uma cerveja na casa dele.

Que apê do caralho, Roque! Deve ter levado anos pra deixar assim, tudo funcionando, arrumadinho. Até parece casa de esquerdista caviar. Vamos dar um jeito nisso, ok? Pra ficar com mais cara de homem. Pode parecer contraditório, mas se confundir as coisas, botar tudo fora do lugar, vai ficar mais difícil ver o que está errado. Não é essa a ideia?

Alfred vai buscar uma cerveja na geladeira enquanto Armand abre as gavetas, examina fotos de família, vasculha os papéis sobre a mesa.

Ih, olha só, Roque, chegou correspondência. Tem carta do Médicos sem Fronteiras. Vai me dizer que você está financiando o esquerdismo internacional? Não? Ué? Aqui tá escrito débito automático. Vamos acabar com essa enganação, te ajudar a fazer uma economia aí, botar as contas da casa em ordem. É pra isso que servem os economistas. Tá aqui o número, mano, liga lá e manda cancelar, diz que o nosso amigo Roque não é a Madre Teresa de Calcutá.

Ô Roque, e a professorinha de história que você mencionou no bar, aquela que diz que teve golpe em 64, tortura e o escambau. Ela mora no andar de baixo, né? Tem uma marreta aí, qualquer merda dessas de demolição?

Calma, Roque! Fica tranquilo. A gente só vai lá no banheiro estourar um cano, fazer um estrago no apê dela. Hahaha. Vamos acabar com a vida dessa comunista. Tem que estrangular, Roque, deixar os caras asfixiados. Acabar com a mamata.

homem quebra parede
Detalhe de quebra de superfície no garimpo - Eduardo Knapp/Folhapress

Ô Roque, sabia que nunca convidaram a gente pra lugar nenhum? A gente ficou espantado quando você convidou pra subir. A gente até achou que você podia ser meio louco, né? Ou viado. Sei lá, vai que... O mano aqui é formado em direito, advogado, quer ser juiz pra ajudar o Brasil, e eu sou economista, contador. Mas a gente nunca teve vez. Nem em concurso nem em universidade nem em porra nenhuma de serviço público, você sabe como é, ainda mais com essa bosta de cota pra tudo, preto, índio, ambientalista, candomblé, mulher, gay, porco e o escambau, a gente sempre acaba lá no fim da fila, lá atrás, sempre reprovado, tendo que abaixar a cabeça pra esquerdista, ouvir ordem de professor, diretor, caga-regra de intelectual, tudo comunista. Achou que tinha acabado com a queda do Muro de Berlim? Acabou nada! O Fukuyama goiabou geral. Eles sobreviveram. É! Mas agora é a nossa vez. Tem que exterminar na educação, na cultura. Cortar no osso. Estrangular pela raiz. A gente vai acabar com tudo isso que está aí.

De repente, vendo Armand com martelo e chave de fenda nas mãos, Roque entende que vão começar pelo seu apartamento. E pela primeira vez passa pela sua pequena cabeça que talvez tenha aberto a porta de casa para psicopatas. Seus convidados são o grau zero do civismo e da civilidade até para seus padrões já bastante baixos, mas agora Roque está na mão deles.

Roque aproveita o refrão do mundo dominado por comunistas pra trazer a conversa de volta a seus termos. Ainda está puto com o babaca que armou o circo pra demitir ele na firma e acabou promovido a diretor pelo patrão. Fala em conflito de interesse e imoralidade, o cara não aceitaria a promoção se tivesse o mínimo de caráter e dignidade, mas nessa hora os irmãos Alfred e Armand discordam do anfitrião, dão o contraexemplo do Moro.

Ô Roque, tá parecendo aquele presidente lá do Peru, que arregou na última hora. Puta de um covarde, né? Macho que é macho aguenta o tranco.

E nessa hora, Roque, que afinal começa a perder a paciência, vai lá dentro buscar a arma recém-adquirida e estende ela pro marmanjo que, além de postar no Insta foto dando tiro, puxando ferro com luva, enchendo a cara de creatina e fazendo selfie com camisa regata na academia, vai prestar concurso pra juiz de direito: Tá aqui, ó, agora mete na boca e puxa o gatilho pra gente ver quem é macho de verdade.

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