Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Aprendi desde cedo que, quando algo é muito especial, dá pena de usar

Por cima de paninhos de crochê, a vida transcorre sem grandes arranhões, esperando pelo depois que não chega

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“Esse copo aí, não. Ele é das visitas. Pega o de requeijão.” Se você nunca ouviu uma frase assim, desconfie. Pode estar faltando uma peça essencial —e intocável— ao acervo afetivo da sua família.

Desde cedo, aprendi a regra de ouro da classe média: quando algo é muito bonito ou especial, dá pena de usar. Então você guarda, “que é para não juntar poeira”, numa caixa ou dentro de um móvel, ao lado do sofá. Qual sofá? Aquele que ninguém jamais viu sem capa de plástico, o que vira tobogã de uma tia suada.

Debaixo de redomas, por cima de paninhos de crochê, a vida transcorre sem grandes arranhões, esperando pelo depois que não chega. Mas, olha só, com a maçã foi diferente.

Ilustração de uma pessoa vestindo terno preto, camisa branca, gravata vermelha e chapéu coco preto com uma grande maçã dourada no lugar da cabeça. Ela segura um gelo que está derretendo com um pegador de gelo. Releitura da pintura O Filho do Homem de René Magritte.
Marcelo Martinez/Folhapress

Ao se casar, em 1962, minha mãe ganhou um balde de gelo em forma de maçã. Pode “googlar”, ele era indispensável às senhoras que davam jantares dançantes e coquetéis retrô. Filha temporã, nasci após tudo isso ter saído de moda. A maçã, porém, fez parte da minha criação, ainda que inalcançável.

Nos eventos domésticos, mamãe não deixava seu item favorito se misturar aos comes nem aos bebes. A maçã se mantinha dourada e longínqua. Passou duas décadas exilada no topo do refrigerador, dando um gelo na gente. “Mona Lisa” dos itens nunca usados.

Já adulta e dona de meus próprios cacarecos, vira e mexe eu jogava um verde, na esperança de ganhar a maçã. As repostas eram sempre: “um dia, quem sabe” ou “vou pensar no seu caso”. O eterno depois.

Até que veio a doença da minha mãe. E, com ela, a angústia de quem não reconhecia mais o apartamento de anos, bem como os pertences de toda uma vida. Nada à sua volta fazia sentido. Então, durante uma visita, com o coração vacilante, fiz o teste.

“E aí, mãe? Cadê a maçã? Vai me dar quando?”, perguntei. “Pode levar.” Assim, de bate-pronto. “É sua.” Quase desabei.

Pouco tempo depois, mamãe morreu. Mas, se você quer saber por onde anda a maçã, eu digo —está solta por aí. Apesar da nostalgia, frequentou churrascos e piqueniques. Recheada de balas numa festa infantil, escapou ilesa. Fez até participação em cenário de novela. Linda e útil, toda de época.

Agora, enquanto escrevo de madrugada, eu a observo na tarefa banal de manter as pedras de gelo da minha Coca-Cola. Acho que o depois, enfim, chegou. Um brinde, mãe. Em copo de requeijão, para não perder a ternura.

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