Primeiras operárias do Brasil deram início a luta por direitos da mulher

Sindicalistas defenderam regras como licença maternidade nas greves que marcaram século 20

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São Paulo

Elvira Boni fundou a União das Costureiras em 1919, no Rio. Mobilizou 300 operárias em uma greve que conquistou jornadas menos maçantes. Julia Santiago, analfabeta, foi a primeira vereadora do Recife (PE). Julieta Battistioli, a estreante na Câmara de Porto Alegre (RS), batalhava pelo básico, como paradas para descanso, e passou longa parte da vida costurando na fábrica das Lojas Renner.

Não fosse pela relevância local em suas cidades, essas três mulheres seriam como tantas outras operárias pobres e anônimas que mobilizaram greves na primeira metade do século passado e não ficaram reconhecidas como grandes feministas.

Embora as direções dos maiores sindicatos tivessem rostos e nomes masculinos, as mulheres foram fundamentais nas organizações do chão de fábrica: tanto em greves como a geral de 1917, que envolveu cerca de 50 mil pessoas no país, como em paradas esporádicas de lojas têxteis, praticamente operadas por elas.

Eneida Pamplona e a mãe, Zeni Pamplona (à dir.); filha de Elvira Boni, Zeni diz que sua mãe, fundadora da União das Costureiras, acreditava que a igualdade seria factível
Eneida Pamplona e a mãe, Zeni Pamplona (à dir.); filha de Elvira Boni, Zeni diz que sua mãe, fundadora da União das Costureiras, acreditava que a igualdade seria factível - Adriano Vizoni/Folhapress

“Mulheres não foram apagadas da história sindicalista, até porque formavam substancialmente a maior força de trabalho. Só não eram a cara do movimento”, diz a historiadora Glaucia Fracarro, autora de um livro sobre feminismo e trabalho de 1917 a 1937.

Além de pautas comuns a todos os trabalhadores, como jornada de oito horas e um salário justo que acompanhasse a alta dos alimentos após a Primeira Guerra, mulheres tinham questões adicionais.

As reivindicações incluíam licença-maternidade, igualdade de salários com homens e fim do abuso por parte do gerente.

Na época, não existia no ordenamento jurídico brasileiro a ideia de consenso sexual —portanto, estupro não era crime. Elas também defendiam melhores condições às crianças, que trabalhavam pela metade do salário das mulheres adultas.

Elvira, Julia e Julieta passaram por isso. Todas já eram operárias entre 10 e 13 anos.

Aos 20, Elvira fundou a União das Costureiras, logo depois de uma grande passeata em 1º de maio. Em uma revolta que ficou conhecida em jornais da época, ela liderou a “greve das abelhas de luxo”, uma paralisação de duas semanas que agregou cerca de 300 mulheres de 39 empresas.

A parada não ocorreu apenas para pressionar patrões homens. Muitas lojas e ateliês do Rio de Janeiro eram propriedade de mulheres imigrantes, muitas vindas da França.

Elvia Boni
Elvira Boni presidiu a mesa de trabalhos do 3º Congresso Operário Brasileiro, em 1920 - Acervo

“Essa greve não acontece isolada, mas junto à dos alfaiates e à das lavadeiras, que viviam em condição muito pior. Só que as costureiras conseguiram se organizar melhor”, afirma Beatriz Luedemann, historiadora pela Unifesp.

A paralisação garantiu que várias empresas aderissem a jornadas de oito horas (estipulada por Getúlio Vargas só em 1932) e pagamento ou abolição de horas extras. Como não havia lei e fiscalização para isso na Primeira República, as garantias duravam poucos meses, e as fábricas retornavam aos regimes exaustivos.

A trajetória de Julia Santiago, no Recife, conta com episódios semelhantes aos de Elvira. Nascida em 1917, quando o movimento grevista ganhava força, mudou-se com a mãe de São Lourenço da Mata para a capital pernambucana aos 10 anos. Aos 12, já na indústria, pede ao chefe que lhe arranje mais um tear para costura.

“Ela era ativa, fominha, tinhosa. Desde criança se mostrava uma liderança”, conta Wendell Kettle, maestro e professor de música da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Ele é autor da ópera “Júlia, a tecelã”, criada em 2017, no seu centenário.

A peça de Kettle virou um dos importantes registros recentes da vida de Julia, que também ganhou um curta-metragem. A obra tem episódios em que ela luta pela igualdade de salário com os homens, enfrenta o dono da tecelagem, lidera uma greve pela licença-maternidade e é alvo dos xingamentos de um padre, que orienta as pessoas a não votarem em comunista.

Reprodução da ópera "Julia, a Tecelã", de Wendell Kettle, em homenagem a seu centenário, celebrado em 2017
Reprodução da ópera "Julia, a Tecelã", de Wendell Kettle, em homenagem a seu centenário, celebrado em 2017 - Reprodução

Segundo as pesquisas do maestro, ela não queria ser vereadora porque não sabia ler e escrever. Sua atuação social enquanto tecelã foi tão reconhecida pelos colegas, que se tornou a primeira vereadora do município, já na década de 1940. Julia teria recebido a faixa em um bloco de Carnaval.

Comum em todos os pleitos, o pedido por licença-maternidade, garantida em 1943, tem origem nessa série de batalhas esparsas das décadas anteriores. As mobilizações obrigaram o Congresso a criar um comitê de legislação trabalhista antes do período Vargas. Um dos principais assuntos de discussão era o apoio a esse direito, encarado como uma forma de diminuir o agito das trabalhadoras dentro das fábricas.

No Rio Grande do Sul, Julieta Battistioli trabalhava em uma das empresas que se consolidava como a maior potência têxtil do estado. Empregados da Renner tinham benefícios na indústria, mas seguiam uma doutrina corporativa distante das ideias revolucionárias da época, de acordo com Guilherme Machado Nunes, doutor em história pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Nesse contexto, Julieta conseguiu conciliar uma vida de comícios com uma boa relação com os chefes. “Acabavam recorrendo a ela para resolver problemas de dentro da fábrica”, diz Nunes. Apoiada por operários, ocupou a primeira vaga feminina na Câmara de Porto Alegre.

Julia morreu em 1989. Julieta, em 1996. A gaúcha tem descendentes e uma escola que carrega seu nome na capital. Encontrar a família da pernambucana é tarefa difícil até para pesquisadores. Sua história, no entanto, é institucionalmente viva na cidade.

Elvira, que morreu em 1990, tem passagens da vida política contadas em livros e nas recordações das netas e da filha. Zeni Pamplona, 91, ex-bailarina, recorda com afeto da militância da mãe. “Era tão crente que realmente acreditava que a igualdade um dia seria factível, o que a gente quase não acredita mais que pode acontecer. O ser humano está cheio de problemas para resolver.”

Elvira boni
Jornal local do Rio informa a morte de Elvira Boni - Acervo
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