Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

Necessitamos de paciência quando buscamos algo de valor

Conversa sobre preservação da memória esportiva me levou a um caso particular

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Nesta última semana, tive o privilégio de atender a um convite da Academia Olímpica de Portugal. A pauta de nosso encontro foi a importância de valorizar o patrimônio olímpico e a memória de atletas.

Ao longo de quase uma hora, conversamos sobre a necessidade da preservação da memória, o esforço que as entidades portuguesas têm realizado na preservação da memória do esporte e a compreensão e valorização do trabalho de pesquisadores que se empenham em manter viva a história por meio de narrativas biográficas.

Conversa erudita e cheia de lembranças me fez lembrar um caso em particular.

Em Copacabana, insisti e tive um encontro marcante - Adriano Vizoni - 23.mar.21/Folhapress

Durante uma pesquisa sobre as mulheres olímpicas brasileiras, eu e os colaboradores do Grupo de Estudos Olímpicos nos deparamos com um enigma. Depois de conseguir o contato telefônico de uma atleta, éramos sempre atendidos por duas pessoas que não nos permitiam acessá-la.

Depois de muitas tentativas, em uma de tantas idas ao Rio de Janeiro, decidi me empenhar em fazer aquela aproximação e, enfim, decifrar aquele enigma. Chamei o número que tínhamos, e uma voz masculina atendeu. Apresentei-me como professora e coordenadora da pesquisa, falei da importância dela e da necessidade de ouvir aquela atleta a quem buscávamos. E a voz masculina respondeu que não seria possível.

Como pesquisadora que sou, intuí que havia algo mais ali, porque a voz do outro lado não era hostil. Parecia carregada de afeto quando falava. Entretanto, algo o impedia de conceder a permissão.

Segui minha intuição e perguntei se a pessoa a quem procurava era sua parente e se encontrava em boa saúde. E a voz embargada de emoção disse que era seu marido. Diante do silêncio após meu segundo questionamento, perguntei se poderia lhe fazer uma visita, sem que isso significasse a necessidade imperiosa de entrevistar a esposa.

No dia seguinte, fui a Copacabana, bairro em que o casal residia. No saguão do prédio, muitos idosos tomavam banho de sol acompanhados de cuidadores. Subi ao apartamento indicado, e ao sinal da campainha um senhor de porte atlético me atendeu. Simpático, ofereceu-me um café, e, enquanto ele se demorava na cozinha, pude observar muitos retratos espalhados pela sala, com imagens de uma família feliz e atlética.

Ele então contou que, assim como sua amada, também fora atleta e a conhecera em uma edição olímpica. Depois, namoraram, casaram e tiveram filhos. Sua amada, acometida de Alzheimer, pouco se lembrava daqueles momentos.

Respeitei seu silêncio, mas, quando voltamos a falar, perguntei qual era a gravidade do esquecimento. Disse-me ele que do presente nada restava, porém havia como que cacos de memória do passado distante.

Tentando animá-lo, falei da importância da história de sua esposa para o esporte brasileiro. Que seria muito importante tentarmos capturar o que de memória havia ali. Para tanto, seria fundamental juntar álbuns, fotos e medalhas. Ele então aceitou o desafio.

Voltei dois dias depois. Com o cuidado só possível às pessoas que se amam, ele havia providenciado para que sua amada estivesse plena. Sentamo-nos na sala e começamos a abrir álbuns. As imagens das conquistas sugeridas por aqueles objetos foram como o abrir de uma comporta com cenas de competições e amigos.

Gravamos quase uma hora de lembranças narradas por ela, para felicidade de um marido que apenas sorria ao nosso lado.

Mais do que um dado de pesquisa, essa história aponta para a necessidade da paciência quando buscamos algo de valor. E, mesmo diante de um esquecimento funcional, a força da memória afetiva brota como água em um vertedouro.

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