Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Acesso a fotos sem retoque levaria à utopia feminina do 'aceita, expõe e desfruta'

Imagens estampariam capas ao lado de reconfortantes receitas de pudim com furinhos, como a maioria de nós

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"Você está pronta para o biquíni?" foi a primeira pergunta, digamos assim, disparada à queima-roupa. Depois vieram ordens. "Prepare suas pernas para a minissaia." "Conheça a pílula da refeição imaginária." "A série matadora que chapa barriga." "A sopa que seca." E, por fim, uma convocação: "Você dourada hoje!".

Rendida, completamente cercada por manchetes de revistas femininas, me senti feito criminosa que sai com as mãos ao alto diante da polícia do corpão. Pose, aliás, muito repetida por aquelas mulheres lindas, glamorosas e clicadas com os braços para cima. "É que valoriza mais o peito", explicou a bibliotecária que me ajudava na pesquisa, almoçando um recipiente que só tinha cenoura.

Na ilustração de Marcelo Martinez: uma mulher está de costas, observando três revistas penduradas na frente da banca de jornais. A revista do centro, chamada "Fake Life", mostra um close nas nádegas de um corpo feminino "perfeito", de biquíni em uma praia . Já as capas dos dois lados, da revista "Real People", completam a mesma cena da praia, revelando também o restante do quadril da modelo, com culote, celulites e marcas comuns.
Marcelo Martinez

Naquela tarde, eu me encontrava dentro do acervo fotográfico de uma das maiores editoras do país e precisava escolher imagens de famosas tidas como ícones de beleza. A meu ver, uma tarefa nada desafiadora. O que mais eu encontraria ali que já não tivesse visto trocentas vezes, estampado em sites e bancas de jornal? Por entre aspas do tipo "bebo muita água", "tenho genética boa", "sambo e faço surfe".

Contudo, o que parecia um mero job se transformou numa epifania, tão brutal quanto espinha que irrompe no meio da nossa testa ou vento que levanta nossa saia, revelando uma calcinha de vó: as fotos que eu iria acessar não tinham retoque.

De uma pilha de pastas contendo musas de outrora, pulularam braços roliços e pancinhas sem definição. Culotes meigos, emoldurados por tangas de época. Bocas risonhas e francas, com dentes na cor original de fábrica e lábios sem preenchimento.

Nos arquivos recentes, ainda que maquiadas, bem iluminadas e esculpidas por cirurgiões e personal trainers, havia deusas com rugas, estrias, brotoejas e até picadas estufadas de mosquito. Seios sinceros apontando para a frente, não para as estrelas.

Um caminho que naturalmente conduziu à virilha de uma das atrizes mais sexy do Brasil. Esplêndida. Empelotada, quiçá alérgica. 
Inegavelmente cabeluda. Livre, plena, mas photoshopada na história oficial. Diagramada embaixo do título "Especial: bumbum na nuca".

Se aquela virilha —e tudo mais que vi no esplendor irretocável de suas verdades— tivesse conseguido chegar às capas de revista, imagine a revolução que não teria sido.

Em vez de "afina, levanta e modela", a utopia feminina do "aceita, expõe e desfruta". Se possível, ao lado de uma reconfortante receita de pudim —que costuma ter furinhos, igual à maioria de nós.

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