Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Certas coisas a gente só tem como enxergar graças a uma baita miopia

Havia no mostruário de olhos um arco-íris de íris, 50 tons de cinza, tudo pintado à mão

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Naquela salinha, é costume ficar ouvindo o mix de sucessos da rádio FM. Não há nada para fazer ou ler, nem mesmo revista antiga. Nos observando de volta, apenas o modelo anatômico de um olho humano, visto por dentro.

Enquanto espero, talvez eu devesse relembrar todas as peripécias que vivi graças à miopia, mas a verdade é que não houve tantas. Uso lentes desde a adolescência e o mais empolgante que já me ocorreu, bem, foi dormir no cinema e perder uma delas no ombro de um date. Ou, agachada em pânico debaixo do chuveiro, descobrir que a dita cuja estava presa o tempo todo numa dobra da cortina.

Agora, veja você. Não fosse por minha péssima visão para longe, eu não teria achado o assunto de hoje.

Na ilustração de Marcelo Martinez: um personagem, formado por um globo ocular de chapéu e com longas pernas, está parado em frente à fachada de uma loja que tem um par de óculos pendurado como placa
ilustração - Marcelo Martinez

Há várias décadas no ramo de soluções para as mais variadas ziquiziras óticas, a Elza Lentes era administrada pela finada senhora que lhe deu o nome e vários dos seus sobrinhos. Um deles, Antônio, que tem as mãos mais leves e delicadas para o tira e põe lenticular que se dá a cada uma das minhas revisões anuais.

Desta vez, fiquei sabendo que só restou ele nos negócios da família. O que o levou a acumular todos os departamentos da diminuta holding: o de óculos, o de lentes e o mais artístico deles... O de próteses.

Intrigada, pedi para ver o mostruário. E, com sua habitual sutileza, Antônio puxou uma gaveta repleta de olhos. Cena digna de filme de terror para quem sofre de tripofobia, mas um deleite para os que buscam a democracia de diferentes pontos de vista, ainda que feitos de resina.

Do amarelo ao preto, havia ali um arco-íris de íris. Tudo pintado à mão. Cinquenta tons de cinza, inclusive o matiz ardósia dos olhos de Chico Buarque e o proverbial violeta da atriz Elizabeth Taylor. Alguns até com leve catarata.

"Outro dia fizemos os do Fábio Assunção, a pedido de um fã." Nesse momento, julguei ouvir Billy Idol cantando "Eyes without a Face" no mix da rádio, mas pode ter sido na minha cabeça.

Eram olhos sem rosto, mas não sem história. Tanto que Antônio me contou a da sua melhor cliente. Usuária de próteses nas duas vistas, surge muito bem-humorada, com uma única exigência: jamais repetir a cor. "Já teve variações de castanho, pelo menos três tipos de verde. Por ora, está tudo azul."

A cada colocação, a cliente sente a textura do seu futuro olhar com as mãos e ouve o mesmo comentário do marido que ela não vê. "Linda como sempre." Os dois, então, caem na risada. "Só assim para um casamento durar 40 anos!", diz. "É olho por olho."

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