Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Fotografia amadora tem potencial histórico, mas hábito está desaparecendo

Sem essas máquinas de produzir nostalgia, corremos o risco de ter existido como pálidas selfies fazendo bico e dando joinha

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É uma imagem com cores distorcidas, feito filtro de Instagram. Só que a data do século passado, impressa num canto, entrega a verdade. Cochilando no ombro de alguém, já com um mês de idade, lá estou eu capturada pela primeira vez: sem foco.

Custava meus pais terem segurado a câmera com firmeza? Ou gastado mais rolos de filme? Por que tão poucos registros? Como argumento, o retrato de uma época. "Nem todo mundo tinha costume. Eram 36 poses no máximo. A gente estava ocupado vivendo, não fotografando."

O contorno de uma pessoa que fotografa com uma câmera sobrepõe imagens de películas fotográficas.
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune - Bia Braune

Com o perdão dos desapegados, dos que temem ter suas almas roubadas ou dos que sempre saem piscando, fotografar é preciso, sim. Tanto quanto viver. Memória só não basta —seja a nossa própria ou a do celular.

Todo mundo conhece um exagerado assim. Nas viagens, nas festas, no meio da rua, produzindo trocentos cliques com variações mínimas. Mais aberto. Mais fechado. Ih, passou um carro na frente.

Agora junta e faz uma cara engraçada. "Ai, que mania. Vai demorar muito isso aí?"

Por entre muxoxos de impaciência, fotógrafos amadores enxergam o que há de mais pitoresco, ironicamente se mantendo invisíveis. Quase ninguém se oferece para lhes tomar a câmera e retribuir a pose. De tanto subir e se abaixar em busca de ângulos ideais, vivem com a lombar em pandarecos. E o resultado, convertido em belíssimos pixels, acaba postado sem crédito no feed alheio.

No dia em que esses altruístas se desencantarem de vez ou ficarem com a vista cansada, não haverá mais instantâneos de crianças banguelas que virarão CEOs ou de tias dançando com roupas e cabelos ternamente ridículos daqui a 20 anos. Sem suas máquinas de produzir nostalgia, corremos o risco de ter existido como pálidas selfies fazendo bico e dando joinha.

Para além de álbuns de família, toda fotografia amadora tem potencial histórico. Ao folhear um livro sobre o Rio antigo, encontrei um singelo frame entre páginas de Augusto Malta e Marc Ferrez. Do alto de uma carroça, tentando enquadrar a mulher em lua de mel, um anônimo congelou no tempo um prédio que se perdeu no bota-abaixo da cidade. Sem técnica, deixando vazar a cabeça do cavalo, um recorte que não se conhecia. Verdadeira revelação.

Mal tirada, semidevorada por cupins ou passível de ser deletada por um bug na nuvem, toda imagem é rara e importante, basta que passe o tempo certo. "Vai demorar muito isso aí?" A vida toda. Então aproveita, encolhe a barriga e diga "xis".

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